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Angioplastia não serve de nada em pacientes com coronariopatia crônica?

Escrito por Eduardo Lapa

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No início de 2018 foi publicado o trial ORBITA que se propôs a avaliar o papel real da angioplastia coronariana (ATC) na diminuição de sintomas de pacientes coronarianos crônicos. Após a divulgação dos seus resultados, as opiniões dos cardiologistas em geral se dividiu em dois polos:

1- o estudo praticamente acaba o papel da ATC no pcte com DAC crônica (vide este editorial do Lancet)

2- o estudo tem muitos vieses e não vai mudar nada a minha prática clínica.

Qual das 2 versões faz mais sentido? Para ajudar na discussão do tema, pedi para que um cardiologista clínico e um hemodinamicista fizessem seus comentários. No final voltarei com minhas considerações.

Texto dos Drs Eduardo Gomes Lima (Doutor em Ciências pela FMUSP, Professor Colaborador da FMUSP, Médico Assistente da Unidade de Aterosclerose InCor HCFMUSP) e Cristiano Bezerra (Doutor pela FMUSP e colaborador do Cardiopapers):

Recentemente, o estudo ORBITA1 chamou a atenção da comunidade médica e da mídia leiga. Trata-se de um estudo randomizado, cego, incluindo 200 pacientes portadores de DAC uniarterial (com lesão ≥70%) randomizados para ICP (n=105) ou procedimento placebo (n=95). A maior proporção dos pacientes apresentava lesões em DA (69%) e a mediana de FFR e iFR foi de 0,69 e 0,76 respectivamente. Além disso, cerca de 59% apresentavam angina CCS II. O desfecho primário do estudo foi o incremento no tempo de exercício entre os grupos. O cálculo do número de indivíduos incluídos previa um incremento diferencial de 30 segundos entre os grupos, favorecendo o grupo ICP.  Desfechos secundários incluíam melhora da classe e frequência de angina, bem como de parâmetros isquêmicos na ecocardiografia de stress. O procedimento foi realizado utilizando-se técnica padrão com uso de stents farmacológicos e, para garantia de adequado cegamento, foi feito uso de sedativos e isolamento acústico.

            Como resultado principal, não foi observada diferença no incremento do tempo de exercício entre os grupos terapêuticos: 16,6 segundos (IC: 8,9-42 seg; p=0,200). Desfechos secundários como limitação física, frequência e classe funcional de angina, qualidade de vida, tempo para infra de 1mm no teste de esforço, escore de Duke e VO2 pico também foram semelhantes entre os grupos. No entanto, houve melhora da isquemia documentada por ecocardiograma de stress dos pacientes submetidos a ICP na avaliação da mobilidade segmentar (p=0,0011). Os autores concluem que a ICP não melhorou a tolerância ao exercício quando comparado a procedimento placebo em pacientes uniarteriais portadores de DAC estável.

            Parte da confusão acerca desse estudo advém de uma má leitura ou interpretação dos dados. É preciso que entendamos alguns fatos antes de emitirmos nossa opinião:

1)Trata-se de uma população de uniarteriais por estimativa visual.

O estudo ORBITA incluiu apenas pacientes uniarteriais anatômicos! Isso quer dizer que a avaliação funcional realizada não era determinante na inclusão do estudo. Salta aos olhos que a média de estenose dos pacientes foi de 84,4%, porém a mediana de FFR, por exemplo foi de 0,72 (intervalo interquartil 25-75 de 0,57-0,81). Isso significa que 25% desses pacientes que realizaram FFR tinham FFR>0,8, ou seja, sem evidência de isquemia e não seriam randomizados no estudo FAME 23, por exemplo. Assim, o conceito de revascularização adotado no ORBITA foi “guiado por anatomia”, mas não “guiado por isquemia”.

2) O desfecho primário do estudo não foi angina.

Apesar de não ter encontrado diferença na frequência ou classe de angina, vale lembrar que o desfecho primário considerado no ORBITA foi tolerância ao exercício. Isso deve ser enfatizado porque boa parte dos comentários sobre o presente estudo concentra-se na suposta “ineficácia da angioplastia em melhorar angina”. O ORBITA não foi desenhado pra isso. Aliás, cabe aqui a consideração de que a maior parte dos pacientes randomizados eram pouco sintomáticos, de forma que a revascularização poderia não traduzir em melhora considerável deste aspecto. Dados disponibilizados no material suplementar, apontam para o fato de que logo antes da randomização (após a fase de 6 semanas de otimização terapêutica com antianginosos) 76% e  67% dos pacientes nos grupos ICP e clínico respectivamente tinham angina CCS 0,1 ou 2.

Entendendo a tolerância ao esforço como entidade com múltiplas variáveis envolvidas, fica fácil entender que o tratamento da obstrução do vaso epicárdico de um indivíduo não necessariamente se traduzirá em melhor capacidade física4.

            3) A angioplastia resultou em melhora da isquemia documentada.

            Ainda que não fosse critério para inclusão no estudo, nem sequer desfecho primário do mesmo, é fato que a angioplastia cumpriu seu papel de melhorar a isquemia de forma objetiva. Vale ressaltar que aqui não estamos falando de angina (por vezes subjetiva, multifatorial, modulada por limiar e percepção da dor, etc.), mas sim, de isquemia documentada por método de imagem. Estudos prévios como COURAGE em seu subestudo nuclear5 já atestavam a superioridade da angioplastia na redução de área isquêmica documentada (8,2 para 5,5% na ICP e 8,6-8,1% no braço clínico; p<0,0001).

            Aqui vale uma consideração fisiológica básica: a obstrução do vaso epicárdico coronariano é apenas um dos fatores associados a isquemia e angina. Temos diversas etiologias para isquemia (doença de microcirculação, variação do tônus coronariano, etc.) bem como para angina (vasoespasmo, síndrome X, etc.) que não a obstrução coronariana por placa de ateroma. Assim, podemos concluir que em um estudo randomizado e cego, incluindo pacientes uniarteriais anatômicos predominantemente pauci-sintomáticos, o tratamento percutâneo melhorou a isquemia, mas não se traduziu em melhora de capacidade física ou angina.

            Em tempos pós-ORBITA alguns questionam quais seriam os pacientes que se beneficiariam de ICP no cenário da DAC crônica ou mesmo se o presente estudo modificará as atuais diretrizes. Entendo que as indicações de intervenção coronariana permanecerão as mesmas: por prognóstico (lesões críticas envolvendo grande território de isquemia, não avaliada pelo presente estudo) ou em pacientes sintomáticos a despeito de tratamento medicamentoso otimizado, preferencialmente lançando mão de documentação objetiva de isquemia (revascularização guiada por isquemia) de forma invasiva (FFR/iFR) ou não invasiva (cintilografia, teste ergométrico, ecostress).

Voltando agora para minha opinião (Dr Eduardo Lapa)

O estudo ORBITA chamou muita atenção primeiro por ter sido um SHAM control trial. O que é isso? Trata-se de um estudo em que todos os pacientes são submetidos a um procedimento, no caso o cateterismo cardíaco. Mas apenas uma parte destes pacientes, como dito, ia para angioplastia. A outra parte apenas realizava a punção arterial, colocação de introdutor, etc, mas não era submetida à ATC. A primeira pergunta é: isso é ético? Sim. Vários estudos já fizeram isso em cardiologia, incluindo implante de marca-passo definitivo em um paciente com síncope e deixá-lo desligado posteriormente. Nestes casos são procedimentos cirúrgicos menores, com baixíssimo risco de complicações. A lógica de submeter metade dos pacientes de um trial a isto se deve ao fato de muitas vezes sintomas poderem ser influenciados pelo efeito placebo de um procedimento. Quem nunca teve aquele paciente que reclamava de dor torácica com frequência e que depois que fez cate diagnóstico (muitas vezes sem nenhuma lesão coronariana) ficou assintomático?

OK. Segundo ponto: por que os pesquisadores usaram como endpoint o tempo que o paciente conseguia correr na esteira e não os sintomas de angina dos pctes? Porque sintoma de dor sempre é uma coisa subjetiva. Por mais que tentemos deixar a avaliação subjetiva por uso de escalas como a CCS, isso nem sempre é fácil de graduar. Já o tempo no teste ergométrico é bastante preciso, sendo uma variável contínua (posso dizer que saiu de 90 s para 97 s após o tratamento, por exemplo).

Terceiro ponto: a pergunta a ser respondida pelo estudo não é: angioplastia melhora sintomas em pacientes com DAC crônica? Não é isso. Mas sim: angioplastia melhora sintomas/tempo de esforço de pacientes com DAC crônica maximamente medicados para angina? E friso isso porque basta vermos que os pacientes antes da randomização usavam em média 3 medicações antianginosas. 3!!!! E daí? basta você lembrar dos últimos pacientes que mandou para atc devido à angina “refratária”. Não sei vocês, mas na prática (me incluo nessa estatística) vejo que a maioria está usando apenas 1 ou 2 angentes. Exemplo: atenolol 50 mg 2xd + nitrato. Ou algo do tipo. No trabalho, o número médio de medicações antianginosas usadas por pcte era 2,9 (3 de forma arredondada) antes da randomização. As 3 medicações mais usadas (dados do material suplementar) eram: betabloq (80% dos casos), anlodipino (90% dos casos) e nitratos de longa duração (65% dos casos). Ou seja, nada do outro mundo. Trimetazidina nem entrava no roll de medicamentos, por exemplo.

Quarto ponto: ah, mais vários pacientes foram submetidos à ATC mesmo o FFR sendo acima de 0,8. Veja bem, se você tem um paciente com angina CCS 2 apesar do tratamento clínico otimizado, manda ele para o cate e tem uma lesão de 80% na DA terço médio e nenhuma outra lesão, você vai pedir para o hemodinamicista fazer um FFR dessa lesão? Não!! Ninguém faz isso na prática. Usa-se muito FFR em pctes multiarteriais ou quando há dúvida se há isquemia. Não é o caso. Mas por que então fizeram FFR nesse estudo? Provavelmente por ser um estudo acadêmico eles laçaram mão do maior número de recursos possíveis para estudar os pctes, incluindo eco stress, por exemplo. Ou seja, esse argumento do FFR tem lógica mas na prática ninguém pediria esse exame para o paciente visto no trial. Até acho que cada vez mais vamos passar a usar o FFR de forma rotineira. Isto porque a evidência de doença microvascular como causadora de angina é cada vez mais forte. Mas o fato é que não é rotina usar-se FFR para pcte uniarterial com angina.

Quinto ponto: ah, mas houve melhora de isquemia nos métodos complementares. OK. Mas já sabemos por um número grande de estudos que ATC no pcte crônico não diminui IAM nem aumenta sobrevida. Ponto. Sendo assim, o único benefício que poderia trazer ao pcte seria melhora de sintomas. O paciente não quer saber se a isquemia dele diminuiu 3%, 5% ou 10%. Já que isso não vai diminuir o risco de morte/iam, ele quer saber se vai melhorar sintomas. Não melhorou.

Sexto ponto: bem, mas quero ver alguém ter coragem de fazer isso numa lesão de DA proximal. Pois é, fizeram. Dos pctes do grupo placebo 30% possuíam lesão de DA proximal, por exemplo.

Ok, mas e aí? Qual a sua conclusão do estudo? ATC não serve de nada ou o estudo foi irrelevante e não muda nada minha prática? Nenhum dos dois, na minha singela opinião. Para minha prática clínica o que o estudo mais altera é o conceito que de fato temos que usar ao máximo o arsenal terapêutico medicamentoso que temos a nossa disposição para eliminar os sintomas do paciente antes de considerarmos intervenção. O uso de 3 antianginosos antes de indicar uma atc definitivamente não é a regra em local algum que conheço. Mas provavelmente deveria ser, pelo que vimos no ORBITA. Os resultados do estudo reforçam o fato de que muitas vezes diretrizes colocam graus de recomendação que não são os mais corretos. Como defender um grau de recomendação I em ATC em pcte com DAC crônica após um estudo bem realizado como este? Mas, obviamente não quer dizer que o procedimento não tenha indicação. Exemplo simples: tem muito paciente que simplesmente não usa os remédios adequadamente. Se imaginarmos um paciente com DAC crônica pura, entram aí: aas, estatina, bbloq, possivelmente um ieca. Coloquemos associado a isso mais 2 antianginosos. 6 medicações diferentes, algumas usadas mais de uma vez por dia. Muitos pacientes não vão usar tudo isso adequadamente e por isso vão persistir sintomáticos.

Resumindo, como na maior parte dos cenários, nem tanto ao céu, nem tanto ao mar.

Referências:

  1. Rasha Al-Lamee et al. Percutaneous coronary intervention in stable angina (ORBITA): a double-blind, randomised controlled trial. The Lancet (2017).
  2. Boden WE, O’Rourke RA, Teo KK, et al., COURAGE Trial Research Group. Optimal medical therapy with or without PCI for stable coronary disease. N Engl J Med 2007;356:1503–16.
  3. De Bruyne B, Pijls NH, Kalesan B, et al., FAME 2 Trial Investigators. Fractional flow reserve-guided PCI versus medical therapy in stable coronary disease. N Engl J Med 2012;367: 991–1001.
  4. Hambrecht R et al. Percutaneous coronary angioplasty compared with exercise training in patients with stable coronary artery disease. Circulation. 2004;109:1371-78.
  5. Shaw LJ, Berman DS, Maron DJ, et al., COURAGE Investigators. Optimal medical therapy with or without percutaneous coronary intervention to reduce ischemic burden: results from the Clinical Outcomes Utilizing Revascularization and Aggressive Drug Evaluation (COURAGE) trial nuclear substudy. Circulation 2008;117:1283–91.

 

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Sobre o autor

Eduardo Lapa

Editor-chefe do site Cardiopapers
Especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela SBC

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