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O dogma da aspirina na prevenção primária vem sendo bastante questionado graças a recentes ensaios clínicos como o ARRIVE e o ASCEND. Embora a terapia antiplaquetária seja indicada para alguns pacientes com IC, como os coronariopatas, o uso rotineiro de antitrombóticos não está indicado.
Há mais de 25 anos, um pequeno ensaio clínico com 18 pacientes deu início a um debate sobre os efeitos da interação entre a aspirina e os iECA que persiste até hoje. O racional é baseado no antagonismo que as duas drogas exercem sobre a síntese das prostaglandinas:
– Os iECA reduzem a degradação de cininas, com alguns efeitos indesejados como a tosse da bradicinina e outros benéficos como o aumento da síntese de prostaglandinas vasodilatadoras que contribuem no manejo da IC;
– A aspirina é um inibidor inespecífico da ciclo-oxigenase que bloqueia a síntese de prostaglandinas e pode interferir nos efeitos dos iECA sobre a resistência vascular sistêmica e o débito cardíaco, especialmente em doses maiores que 325mg/d.
Diversos estudos observacionais têm apresentado evidências conflitantes sobre essa interação. Em subanálises dos estudos SOLVD e CONSENSUS II, por exemplo, a interação aspirina-enalapril foi associada com maior mortalidade. No entanto, vale lembrar que tanto no SOLVD quanto no CONSENSUS II a droga de estudo foi o enalapril e houve uma diferença significativa no uso de betabloqueador e história de infarto prévio quando os pacientes foram reagrupados de acordo com o uso de aspirina. Em uma meta-análise de 5 estudos (incluindo o SOLVD), conduzida pelo prestigiado Dr. Braunwald e publicada no Lancet em 2000, o uso de aspirina em mais de 12 mil pacientes com disfunção ventricular não afetou o benefício dos iECA sobre desfecho composto de morte, IC ou infarto. Da forma similar, uma subanálise do estudo WARCEF (que foi o maior e mais robusto ensaio clínico comparando antitrombóticos na IC) não encontrou diferença de eventos adversos entre portadores de IC tratados com aspirina ou varfarina, sendo que mais de 98% deles usavam iECA ou BRA.
Alguns autores não acreditam na interação aspirina-iECA e questionam as limitações metodológicas de estudos observacionais. Outros defendem que a interação possa existir do ponto de vista farmacológico, mas que não cause repercussão clínica significativa. Alternativamente, o uso de terapia antiplaquetária pode servir apenas como um substituto para outro preditor, como por exemplo a cardiopatia isquêmica em que o prognóstico é pior.
A melhor forma de investigar a interação aspirina-iECA seria através de um experimento fatorial 2×2, que é improvável de acontecer por várias razões, incluindo tamanho da amostra, praticidade, ética e financiamento com duas drogas genéricas que vem perdendo espaço de indicação.
Em resumo: Embora a aspirina possa atenuar alguns dos efeitos hemodinâmicos agudos dos iECA, a maioria das evidências não indica um efeito adverso clinicamente significativo no tratamento de longo prazo da IC.