Valvopatias

Devemos usar profilaxia para endocardite em prolapso de valva mitral?

Escrito por Ferdinand Saraiva

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A Endocardite Infecciosa (EI) é uma condição relativamente rara, mas de elevada letalidade. A profilaxia antibiótica da endocardite infecciosa (PAEI) em pacientes com lesões valvares submetidos a procedimentos médicos e odontológicos com risco de bacteremia foi proposta em 1955 e se tornou parte da rotina de muitos lugares com base em pequenos estudos e opinião de especialistas.

Entretanto, o impacto da PAEI é muito difícil de ser estimado, uma vez que a EI é uma complicação rara e as nossas atividades cotidianas (como escovar os dentes e usar fio dental) podem resultar em maior carga de bacteremia ao longo de tempo que os procedimentos que fazemos (como extrações dentárias). Por isso, as últimas diretrizes abordando o tema (da American Heart Association em 2007; da European Society of Cardiology em 2009; e também da Sociedade Brasileira de Cardiologia em 2011) orientaram restringir o uso de PAEI para pacientes de alto risco. No Reino Unido, a recomendação foi além: o NICE (National Institute for Health and Clinical Excellence) recomendou abolir totalmente a PAEI em 2008 – e, coincidentemente ou não, a incidência de EI aumentou nos anos seguintes (Dayer et al. The Lancet, 2015).

Pacientes com Alto Risco de Endocardite Infecciosa
Antecedente de Endocardite Infecciosa

Prótese Cardíaca Valvar

Valvopatia corrigida com material protético

Cardiopatia Congênita Cianótica não corrigida

Cardiopatia Congênita corrigida com material protético

Cardiopatia Congênita corrigida com lesão residual

Valvopatia em transplantado cardíaco

Pacientes com Risco Moderado
Valva Aórtica Bicúspide

Valvopatia Reumática

Valvopatia Não-Reumática

Prolapso de Valva Mitral

Pacientes com Risco Baixo ou Incerto
Cardiomiopatia Hipertrófica

Dispositivo de Assistência Ventricular

Dispositivo Elétrico Implantável (Marcapasso/CDI)

Endocardite Infecciosa em Valva Aórtica Bicúspide e Prolapso Mitral

Zegri-Reiriz e colaboradores (Zegri-Reiriz et al. JACC, 2018) revisaram os dados do GAMES (Grupo de Apoyo al Manejo de la Endocarditis Infecciosa em España), um registro de 31 hospitais espanhóis, com um total de 3.208 pacientes consecutivos com endocardite infecciosa confirmada ou possível de acordo com os critérios de Duke. Os pacientes foram avaliados de acordo com a condição valvar predisponente e sua classificação de risco para EI (“alto” ou “intermediário/baixo”), os desfechos clínicos (morte e complicações), a indicação de cirurgia cardíaca e os dados microbiológicos, incluindo a possível porta de entrada da infecção. Os pacientes com EI de dispositivos cardíacos implantáveis foram excluídos.

Os pacientes com Valva Aórtica Bicúspide (VAB, 54 pacientes no total) eram mais frequentemente homens (79%), com idade média de 43 anos e poucas comorbidades. A maior parte já tinha disfunção aórtica moderada ou importante (64.8%) e adquiriu a infecção na comunidade (90.7%). A porta de entrada mais identificada foi a cavidade oral (14.8%), e os microrganismos mais isolados também eram de cavidade oral (42.6%, com 35.2% de estreptococos do grupo Viridans – EGV). A taxa de complicações intracardíacas foi de 50% e a de insuficiência cardíaca, de 40.7%. A mortalidade hospitalar foi relativamente baixa (5.6%), mas com uma alta taxa de cirurgia cardíaca (indicada em 75.9% e realizada em 68% dos pacientes).

               Os pacientes com Prolapso de Valva Mitral (PVM, 89 pacientes) também eram mais frequentemente homens (67.4%), com idade média de 63 anos e poucas comorbidades. 56% tinham insuficiência mitral moderada ou severa. A cavidade oral foi a porta de entrada suspeitada em 18% dos pacientes, e 46.1% das bactérias isoladas eram atribuíveis à boca (39.3% de EGV). A taxa de complicações intracardíacas foi de 47.2% e a de insuficiência cardíaca, de 34.8%. A mortalidade foi de 10%. Cirurgia cardíaca foi indicada em 62.9% dos pacientes e, estranhamente, realizada apenas em 39.3%.

               O mais interessante desses dados, entretanto, é compará-los com os pacientes classificados como de “alto risco” (AR) ou de “risco intermediário-baixo” (RIB) para endocardite.

Os pacientes com VAB e PVM eram mais jovens que os demais (VAB: 43 anos; PVM: 63 anos; AR e RIB: 69 anos) e tinham mais frequentemente a suspeita de um foco dentário (VAB 14.8%; PVM 18%; AR, 5.8%; RIB, 6%). Os estreptococos do grupo Viridans foram os microrganismos predominantes na VAB e na PVM (VAB 35.2%, PVM 39.3%, AR 12.1%, RIB 15%), enquanto os estafilococos foram os mais isolados nos demais indivíduos (possivelmente refletindo mais PAEI com cobertura para estreptococo neste perfil).

Avaliando apenas os pacientes com EI adquirida na comunidade, a taxa de complicações dos pacientes com VAB e PVM foi bem mais próxima dos pacientes de alto risco (VAB 50%, PVM 47.2%, AR 44.8% e RIB 30.6%). A indicação cirúrgica foi bem maior nos pacientes com VAB em comparação ao grupo de risco intermediário-baixo (VAB: 75.9% indicado e 68% realizado; RIB: 62.2% indicado e 40.6% realizado), o qual, por sua vez, não diferiu significativamente em relação aos pacientes com PVM (PVM: 62.9% indicado e 39.3% realizado).

Finalmente, a mortalidade hospitalar foi bem menor nos pacientes com BAV e PVM (BAV 5.6%, PVM 10.1%, AR 29%, RIB 28.3%), mas estamos falando de pacientes muito mais jovens e com muito menos comorbidades. Em análise multivariada, ajustando-se para outros fatores prognósticos conhecidos, não houve diferença significativa entre os grupos.

Conclusão

Valva Aórtica Bicúspide e Prolapso de Valva Mitral são valvopatias comuns e estão relacionadas a maior incidência de EI. Uma vez diagnosticada EI nestes pacientes, o comportamento clínico é semelhante ao de pacientes de alto risco. As elevadas taxas de indicação cirúrgica nestes casos chamam a atenção para a necessidade de se prevenir complicações.

Na ausência de melhores evidências, pode ser razoável considerar Valva Aórtica Bicúspide e Prolapso de Valva Mitral (sobretudo a primeira) como condições de alto risco e reconsiderar a profilaxia antibiótica para nestas situações.

Referências

Dayer MJ, Jones S, Prendergast B, Baddour LM, Lockhart PB, Thornhill MH. Incidence of Infective Endocarditis in England, 2000-13: a secular trend, interrupted time-series analysis. The Lancet, 2015;385(9974):1219-28.

Zegri-Reiriz I, Alarcon A, Muñoz P, Sellés MM, Gonzáles-Ramallo V, Miro JM et al. Infective Endocarditis in Patients with Bicuspid Aortic Valve or Mitral Valve Prolapse. Journal of the American College of Cardiology, 2018; 71(4):2731-27

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Sobre o autor

Ferdinand Saraiva

Residência em Clínica Médica e Cardiologia pelo Hospital Universitário Onofre Lopes/UFRN.
Plantonista da UTI do Hospital Promater e do Pronto-Atendimento do Hospital Rio Grande.

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