Coronariopatia Insuficiência Cardíaca

É verdade que aspirina aumenta o risco de insuficiência cardíaca?

Escrito por Remo Holanda

Esta publicação também está disponível em: Português

A aspirina (ácido acetilsalicílico) é um dos medicamentos mais utilizados em Cardiologia. Diversos estudos randomizados e meta-análises têm demonstrado seu papel na prevenção secundária de eventos cardiovasculares maiores, como morte cardiovascular, infarto ou AVC1,2,3,4, de tal maneira que é recomendada como Classe I em todas as diretrizes para os pacientes apresentando uma Síndrome Coronária Aguda (SCA) bem como no manejo da doença arterial coronária (DAC) crônica5,6. Entretanto, apesar dos já bem estabelecidos benefícios, será que a aspirina poderia levar paradoxalmente a um maior risco de problemas cardíacos como hospitalização por insuficiência cardíaca (IC)? Esse assunto (aspirina x insuficiência cardíaca) foi bastante discutido nos últimos dias devido a um artigo recentemente publicado.

Em um estudo publicado no periódico ESC Heart Failure, Mujaj e cols tentaram avaliar esta possível ocorrência7. Reunindo bancos de dados de vários estudos, totalizando 30.827 participantes com seguimento mediano de 5,3 anos, os investigadores encontraram uma ocorrência maior de hospitalização ou morte por insuficiência cardíaca entre aqueles que faziam uso de aspirina em comparação com aqueles que não utilizavam (4,3 eventos por 1000 pacientes-ano versus 2,4 eventos por 1000 pacientes-ano; hazard ratio ajustada 1,17; IC 95% 1,03-1,34; p = 0,02). A associação entre o uso de aspirina e maior ocorrência de morte ou hospitalização por IC foi consistente em diversos modelos estatísticos, e em análises de sensibilidade que excluíam pacientes sem doença cardiovascular prévia ou excluindo os eventos que ocorriam nos 2 primeiros anos de seguimento.

O que estes resultados sugerem e como eles devem ser interpretados? Em primeiro lugar, é preciso entender a que conclusões este estudo consegue chegar. Por se tratar de um dado observacional (ou seja, não randomizado), a ocorrência de maior risco de IC com aspirina deve ser interpretada como associação, e não causalidade. Estudos observacionais têm capacidade muito limitada de estabelecer causalidade, já que a ocorrência de maior taxa de hospitalização por IC pode ser explicado pela própria aspirina, ou pela presença de outros fatores confundidores que diferenciam os dois grupos de pacientes. Por exemplo, é sabido que os pacientes mais graves, com mais fatores de risco ou com doença vascular estabelecida são mais propensos a receberem aspirina. Ainda que as análises estatísticas façam ajustes para alguns confundidores, não é possível se ajustar completamente para todas as possíveis diferenças, até porque muitas delas nem sequer são mensuradas.

O segundo ponto a ser discutido é a plausibilidade biológica que explicaria esses resultados. A aspirina, de fato, ao inibir a ciclo-oxigenase, poderia teoricamente levar a uma menor produção de prostaglandinas renais, com isso levando a uma maior retenção de sal e água e aumentar o risco de IC. Entretanto, a capacidade de a aspirina inibir esta produção, sobretudo em baixas doses como as utilizadas na prevenção de eventos cardiovasculares, é muito baixa, já que é mais seletiva para a Ciclo-oxigenase-1, ao contrário de outros anti-inflamatórios não hormonais8.  Desse modo, tal efeito provavelmente é muito pequeno para ser relevante clinicamente.

Um terceiro ponto importante é que os resultados observados pelos pesquisadores não são consistentes com outros estudos, sobretudo levando-se em conta os ensaios clínicos randomizados recentes. No estudo COMPASS, que randomizou 27.395 pacientes com doença vascular (infarto prévio, AVC ou doença vascular periférica), não houve diferença entre os grupos aspirina + rivaroxabana versus rivaroxabana isoladamente na ocorrência de IC (2,2% versus 2,1% de pacientes com eventos; hazard ratio  1,02; IC 95% 0,84-1,24)9. Já no estudo ASPREE, que randomizou 19.114 indivíduos com idade > 70 anos sem doença cardiovascular prévia, também não houve diferença na ocorrência de IC entre os grupos aspirina e placebo (2,1 versus 1,9 eventos por 100 pacientes-ano; hazard ratio 1,07; 95% IC 0,79-1,44)10. Lembrando que os estudos randomizados, por eliminarem o confundimento (ao compararem grupos similares em todas as características exceto o tratamento em estudo), conseguem se aproximar muito mais da inferência de causalidade do que os estudos observacionais.

Resumo da ópera: aspirina aumenta o risco de insuficiência cardíaca?

Por todas as razões expostas, o estudo publicado por Mujaj e cols não deve levar a qualquer mudança da nossa prática clínica, nem mudar as diretrizes vigentes. Pacientes com doença vascular estabelecida (DAC, AVC, doença vascular periférica) devem continuar utilizando aspirina em dose baixa (75-100 mg/dia) indefinidamente a fim de prevenir complicações cardiovasculares maiores. Pacientes livres de doença cardiovascular mas com fatores de risco apenas têm benefício incerto do uso de aspirina, e a discussão do risco versus benefício deve ser individualizada.

REFERÊNCIAS

  1. Baigent C, Blackwell L, Collins R et al. Antithrombotic Trialists’ Collaboration. Aspirin in the primary and secondary prevention of vascular disease: collaborative meta-analysis of individual participant data from randomised trials. Lancet 2009; 373: 1849–1860
  2. Antithrombotic Trialists’ Collaboration. Collaborative meta-analysis of randomised trials of antiplatelet therapy for prevention of death, myocardial infarction, and stroke in high risk patients. BMJ 2002; 324: 71–86
  3. Lewis HD, Jr., Davis JW, Archibald DG et al. Protective effects of aspirin against acute myocardial infarction and death in men with unstable angina. Results of a Veterans Administration Cooperative Study. N Engl J Med 1983; 309:396–403
  4. ISIS-2 (Second International Study of Infarct Survival) Collaborative Group. Randomised trial of intravenous streptokinase, oral aspirin, both, or neither among 17,187 cases of suspected acute myocardial infarction: ISIS-2. Lancet 1988; 2:349–360
  5. Levine GN, Bates ER, Bittl JA, et al. 2016 ACC/AHA Guideline Focused Update on Duration of Dual Antiplatelet Therapy in Patients With Coronary Artery Disease: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice Guidelines.  Circulation 2016; 134:e123–e155
  6. Valgimigli M, Bueno H, Byrne RA, et al. 2017 ESC focused update on dual antiplatelet therapy in coronary artery disease developed in collaboration with EACTS: The Task Force for dual antiplatelet therapy in coronary artery disease of the European Society of Cardiology (ESC) and of the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Eur Heart J 2018; 39:213–260
  7. Mujaj B, Zhang ZY, Yang WY, Thijs L, Wei FF, Verhamme P, Delles C, Butler J, Sever P, Latini R, Gf Cleland J, Zannad F, Staessen JA; Heart Omics in Ageing Investigators. Aspirin use is associated with increased risk for incident heart failure: a patient-level pooled analysis. ESC Heart Fail. 2021 Nov 22. doi: 10.1002/ehf2.13688. Epub ahead of print.
  8. Patrono C, Ciabattoni G, Pinca E, Pugliese F, Castrucci G, De Salvo A, et al. Low dose aspirin and inhibition of thromboxane B2 production in healthy subjects. Thromb Res. 1980 ;17(3-4):317-27.
  9. Eikelboom JW, Connolly SJ, Bosch J, Dagenais GR, Hart RG, Shestakovska O, Diaz R, Alings M, Lonn EM, Anand SS, Widimsky P, Hori M, Avezum A, Piegas LS, Branch KRH, Probstfield J, Bhatt DL, Zhu J, Liang Y, Maggioni AP, Lopez-Jaramillo P, O’Donnell M, Kakkar AK, Fox KAA, Parkhomenko AN, Ertl G, Störk S, Keltai M, Ryden L, Pogosova N, Dans AL, Lanas F, Commerford PJ, Torp-Pedersen C, Guzik TJ, Verhamme PB, Vinereanu D, Kim JH, Tonkin AM, Lewis BS, Felix C, Yusoff K, Steg PG, Metsarinne KP, Cook Bruns N, Misselwitz F, Chen E, Leong D, Yusuf S; COMPASS Investigators. Rivaroxaban with or without Aspirin in Stable Cardiovascular Disease. N Engl J Med. 2017; 377(14):1319-1330.
  10. McNeil JJ, Wolfe R, Woods RL, Tonkin AM, Donnan GA, Nelson MR, Reid CM, Lockery JE, Kirpach B, Storey E, Shah RC, Williamson JD, Margolis KL, Ernst ME, Abhayaratna WP, Stocks N, Fitzgerald SM, Orchard SG, Trevaks RE, Beilin LJ, Johnston CI, Ryan J, Radziszewska B, Jelinek M, Malik M, Eaton CB, Brauer D, Cloud G, Wood EM, Mahady SE, Satterfield S, Grimm R, Murray AM; ASPREE Investigator Group. Effect of Aspirin on Cardiovascular Events and Bleeding in the Healthy Elderly. N Engl J Med. 2018; 379(16):1509-1518.

Banner Atheneu

Banner Atheneu

Banner Atheneu

Banner ECG

Deixe um comentário

Sobre o autor

Remo Holanda

Deixe um comentário

Seja parceiro do Cardiopapers. Conheça os pacotes de anúncios e divulgações em nosso MídiaKit.

Anunciar no site