Prevenção

Finalmente, devo ou não usar aspirina na prevenção primária?

Escrito por Remo Holanda

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A aspirina (ou ácido acetilsalicílico, AAS) é um medicamento consagrado em cardiologia, sendo indicado na dose de 75-100 mg por dia para prevenção secundária de eventos isquêmicos em pacientes com passado de doença arterial coronária, doença cerebrovascular ou doença vascular periférica. No entanto, o uso de aspirina em prevenção primária, ou seja, naqueles pacientes com fator de risco (ex: diabetes) mas livres de doença aterosclerótica, é controverso. Recentemente, diretrizes da USPSTF (United States Preventive Services Task Force – Força-Tarefa dos Serviços de  Prevenção dos Estados Unidos) foram atualizadas a fim de incorporar as evidências mais atuais a este respeito1.

Em Outubro de 2021, a atualização das diretrizes da USPTF recomenda que a aspirina em prevenção primária não deve ser iniciada em pacientes com idade ≥ 60 anos. Além disso, segundo a mesma atualização, a aspirina em prevenção primária pode ser considerada em adultos com idade entre 40 e 59 anos, desde que o risco estimado de doença cardiovascular em 10 anos seja de 10% ou mais, e que o risco de sangramento seja baixo. Nesta população, o benefício líquido da aspirina em prevenção primária é pequeno. Tal recomendação se baseia no fato de que pacientes com idade  ≥ 60 anos, embora tenham risco aumentado de doença cardiovascular, também podem sofrer malefício com a aspirina por aumento do  risco de sangramento digestivo, AVC hemorrágico ou hemorragia intracraniana com o uso do antiplaquetário. Tais recomendações estão alinhadas com as diretrizes de prevenção primária do American College of Cardiology/American Heart Association2.

Mas, afinal, por que  as recomendações têm sido modificadas sobre o uso da aspirina em prevenção primária? Isto se deve à publicação de novos ensaios clínicos randomizados mais recentes sobre o tema. O estudo ASPREE, que incluiu cerca de 19 mil pacientes com mais de 70 anos de idade em prevenção primária, não encontrou uma redução de eventos cardiovasculares, além de ter observado um aumento de mortalidade e sangramentos maiores com o uso da aspirina3,4. Já o estudo ASCEND, que incluiu cerca de 15 mil pacientes com diabetes em prevenção primária, encontrou uma redução de eventos cardiovasculares com a aspirina, embora tenha havido também um aumento similar de complicações hemorrágicas. Neste estudo, o NNT (number needed to treat – número necessário para tratar) foi de 91, enquanto o  NNH (number needed to harm – número necessário para causar malefício) foi de 111, de tal maneira que o benefício líquido da aspirina em prevenção primária, mesmo entre os diabéticos, tende a ser pequeno5. Vale lembrar que todos estes estudos foram conduzidos em uma era na qual o controle dos fatores de risco, como hipertensão e dislipidemia, é muito maior, ao contrário dos estudos mais antigos.

Resumindo, de acordo com o USPSTF:

  • a indicação de aspirina em prevenção primária atualmente deve ser restrita a grupos de maior risco de eventos isquêmicos, com baixo risco de sangramento e de preferência deve ser iniciada em uma idade < 60 anos. Além disso, deve-se pesar o conjunto dos fatores de risco do paciente, bem como suas co-morbidades e estilo de vida a fim de se fazer o balanço adequado entre risco de eventos isquêmicos e de sangramento.

A Figura a seguir mostra um fluxograma que pode nos guiar ao se decidir sobre a utilização ou não de aspirina em prevenção de eventos cardiovasculares nos nossos pacientes.

Figura – Fluxograma sugerido pelo USPSTF para uso de aspirina em prevenção cardiovascular (CV).

O que dizem outras sociedades sobre o uso de aspirina na prevenção primária?

  • ESC 2021 – aspirina pode ser considerada em pacientes diabéticos de risco cardiovascular alto ou muito alto na ausência de contraindicações claras (recomendação fraca – IIb)
  • SBC 2019 (trecho da diretriz de prevenção) – Mesmo em pacientes sob maior risco estimado de eventos CV, a aspirina não trouxe benefício líquido, uma vez que induziu mais sangramento nessa subpopulação e a redução proporcional dos eventos vasculares foi discreta em comparação a indivíduos de menor risco
  • AHA 2019 – aspirina em baixa dose pode ser considerada em casos selecionados de pacientes com alto risco cardiovascular, baixo risco de sangramento e idade entre 40 e 70 anos (recomendação fraca – IIb)

Resumo da ópera – nenhuma das principais sociedades de cardiologia coloca AAS em prevenção primária como recomendação forte. As que contemplam o uso da medicação neste cenário o fazem em cenários de exceção. 

  1. https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/draft-recommendation/aspirin-use-to-prevent-cardiovascular-disease-preventive-medication
  2. Arnett DK, Blumenthal RS, Albert MA, et al. 2019 ACC/AHA Guideline on the Primary Prevention of Cardiovascular Disease: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Clinical Practice Guidelines. Circulation.  2019; 140:e596–e646.
  3. McNeil JJ, Wolfe R, Woods RL, et al; ASPREE Investigator Group. Effect of Aspirin on Cardiovascular Events and Bleeding in the Healthy Elderly. N Engl J Med. 2018; 379(16): 1509-1518.
  4. McNeil JJ, Nelson MR, Woods RL et al; ASPREE Investigator Group. Effect of Aspirin on All-Cause Mortality in the Healthy Elderly. N Engl J Med. 2018; 379(16): 1519-1528.
  5. ASCEND Study Collaborative Group, Bowman L, Mafham M, Wallendszus K, et al. Effects of Aspirin for Primary Prevention in Persons with Diabetes Mellitus. N Engl J Med. 2018; 379(16):1529-1539.

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