Terapia Intensiva Cardiológica

O que precisamos saber sobre Delirium na UTI?

Escrito por Fernando Figuinha

Esta publicação também está disponível em: Português

Seu João tem 67 anos e está internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ele foi admitido com diagnóstico de choque séptico de foco abdominal e está sedado, recebendo aminas vasoativas, antibioticoterapia de largo espectro e suporte respiratório através de ventilação mecânica invasiva.

Podemos analisar o seu quadro hemodinâmico porque estamos monitorando continuamente sua frequência cardíaca e sua pressão arterial. Para avaliarmos sua função miocárdica, podemos recorrer ao ecocardiograma funcional. Verificamos sua função renal através do controle da diurese e da coleta periódica de amostras de sangue, com dosagens de ureia e creatinina.

Somos capazes de conduzir os parâmetros ventilatórios e controlar sua função pulmonar de acordo com os resultados de gasometrias arteriais seriadas e de radiografias de tórax, além da observação rigorosa de sua saturação de oxigênio.

Mas como anda a função cerebral do Seu João?

Assim como os demais órgãos, o cérebro também pode apresentar falência no curso de uma doença grave. Sendo assim, sua função deve ser monitorada. Dessa forma, se queremos saber se o cérebro de um paciente está saudável ou não, precisamos checar sua função.

Para auxiliar a compreensão de como a avaliação da função cerebral funciona, vamos utilizar uma comparação. Imagine que acabamos de passar em frente à casa de um amigo. Você sabe que a casa tem dono, mas você não sabe se tem alguém lá dentro. Como você faz para saber se tem alguém dentro da casa? Batendo à porta ou tocando a campainha, não é mesmo? Assim funciona a avaliação da função cerebral de um paciente grave: seu paciente pode estar inquieto ou sedado e com abertura ocular espontânea, por exemplo, mas você não saberá se sua função cerebral está preservada se você não “bater à porta” ou “tocar a campainha” do cérebro.

Um episódio agudo de falência cerebral é reconhecido como delirium, que é, portanto, um marcador de disfunção cerebral aguda. É uma emergência médica.

Para que o delirium possa ser reconhecido, ele precisa ser investigado e, por se tratar de uma síndrome clínica, seu diagnóstico deve ser feito à beira do leito.

DEFINIÇÃO

Em 1990, Lipowski propôs uma definição que tem influenciado as mais recentes classificações psiquiátricas: o delirium é uma síndrome mental orgânica transitória e flutuante de início agudo, assinalada por transtorno global das funções cognitivas, nível de consciência diminuído, anormalidades da atenção, aumento ou redução da atividade psicomotora e distúrbio no ciclo sono-vigília.

A palavra é proveniente do verbo em latim delirare, que quer dizer “estar fora do caminho”, sugerindo, metaforicamente, que o paciente “está sem rumo”. Constantemente os termos delirium e “delírio” são usados, de maneira errada, como sinônimos.

A American Psychiatric Association (APA) esclarece a diferença entre ambos em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição (DSM-5®, 2013). De acordo com a APA, o delirium é uma perturbação da atenção e da consciência seguida por variação da cognição que não pode mais ser bem esclarecida por uma demência prévia ou em desenvolvimento. Essa perturbação evolui em um curto período de tempo com propensão a flutuar ao longo do dia e é resultante de uma causa fisiológica direta de outra condição médica, intoxicação ou abstinência de substância, de exposição a uma toxina ou decorrente de múltiplas etiologias. Já o “delírio” é caracterizado pela APA como uma crença fixa, não suscetível de mudança ainda que haja presença de evidências conflitantes.

A Classificação Internacional de Doenças décima edição (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que o delirium é uma síndrome orgânica cerebral de etiologia não específica, reconhecido por distúrbios de consciência, atenção, cognição, psicomotricidade, emoção e interrupção do ciclo sono-vigília.

IMPORTÂNCIA

Em adultos em UTI, a literatura relata uma prevalência de até 80% em pacientes sob ventilação mecânica e de até 50% nos de menor gravidade. Em crianças em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP), a prevalência pode variar entre 10 e 47%.

Recentemente, Traube e colaboradores (2017) relataram uma prevalência pontual de delirium de 25% em um dia em crianças graves sob cuidados intensivos em recente estudo internacional e multicêntrico envolvendo 994 pacientes. Todos esses valores dependem da ferramenta empregada para diagnóstico, da população e das características da unidade, sendo provavelmente subestimados.

Em adultos graves, o delirium está associado ao aumento do tempo em ventilação mecânica, do tempo de internação na UTI e no hospital e da mortalidade. Além disso, esses pacientes podem apresentar intercorrências durante sua permanência nas UTI, como retirada de dispositivos invasivos e autoextubação. Os dados sobre o delirium em crianças gravemente enfermas são limitados. Entretanto, recentes estudos têm relatado complicações semelhantes às verificadas em adultos, como o prolongamento do tempo de internação e aumento dos gastos hospitalares.

No entanto, as consequências sobre os desfechos clínicos não estão restritas ao ambiente hospitalar.

Vamos supor que nosso paciente, Seu João, apresentou delirium durante uma permanência de 31 dias na UTI e que, após 64 dias de internação hospitalar, recebeu alta para casa. Já faz cinco meses que Seu João está em seu domicílio, mas seus filhos relatam que, durante todo esse período, o pai tem ficado “diferente”. “Esse não é meu marido”, disse sua esposa. Seu João está constantemente deprimido, quieto, desatento, esquece o nome de familiares e amigos e está dependendo de auxílio para suas atividades básicas funcionais. Seu João não é mais o mesmo… O que pode ter acontecido?

Seu João desenvolveu delirium em sua internação. Este pode ser o responsável por sequelas cognitivas em longo prazo, sequelas emocionais e pelo aumento da mortalidade, inclusive em até seis meses após a alta hospitalar. Pesquisas têm sugerido que as consequências neuropsicológicas da internação na UTI podem prejudicar a qualidade de vida dos pacientes após sua saída da unidade.

O delirium tem sido reconhecido como um considerável problema de saúde pública, acometendo um elevado número de pacientes adultos graves, aumentando os custos. Só nos Estados Unidos, os gastos hospitalares relacionados variam de 4 a 16 bilhões de dólares anualmente.

Infelizmente, não é valorizado do mesmo modo que as demais disfunções orgânicas. Faria e Moreno (2013) afirmam que o subdiagnóstico do delirium é uma realidade, principalmente nas UTI. Para os autores, cerca de 66% dos casos podem não ser identificados, mesmo com a alta prevalência que tem sido relatada pela literatura. O subdiagnóstico é, portanto, um grande desafio, pois os pacientes com delirium que não são previamente diagnosticados não são beneficiados por um tratamento apropriado.

O delirium pode ser evitado e não deveria acontecer em momento algum em nenhum paciente. A diminuição de sua incidência precisa ser apreciada como um parâmetro de qualidade de uma UTI, demonstrando avanço nos cuidados aos doentes. Por isso, alguns autores propõem que o delirium seja avaliado como o sexto sinal vital.

Texto do site Pebmed em parceria com o Cardiopapers.

Autora:

Roberta Esteves Vieira de Castro

Médica da UTIP do HUPE/UERJ e do Hospital Vitória

Doutoranda em Ciências Médicas na UERJ

Residência em Pediatria pelo HFCF

Residência em Medicina Intensiva Pediátrica pelo HSE

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Sobre o autor

Fernando Figuinha

Especialista em Cardiologia pelo InCor/ FMUSP
Médico cardiologista do Hospital Miguel Soeiro - Unimed Sorocaba.
Presidente - SOCESP Regional Sorocaba.

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