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Ouviu falar do estudo que diz que gordura saturada faz bem à saúde? Veja nossa opinião sobre o assunto.

Escrito por Eduardo Lapa

Esta publicação também está disponível em: Português

Um dos estudos mais comentados do congresso europeu de cardiologia foi o PURE. Ele tem sido amplamente divulgado em redes sociais e na mídia já que mostrou, entre outras coisas, que gordura saturada (aquela presente em carnes vermelhas gordurosas, por exemplo) seria boa para saúde. Vamos avaliar este estudo em detalhes para ver o que podemos concluir.

Contexto:

  • As recomendações atuais de limitar o consumo de gordura saturada a <10% das calorias diárias são baseadas em estudos observacionais. Além disso, boa parte dos dados provém de avaliações feitas na população norte-americana e europeia, sendo escassos os dados em relação a países subdesenvolvidos onde muitas vezes a subnutrição é comum.

Pergunta principal do trabalho:

  • Avaliar a relação entre consumo de gorduras e seus componentes (total, saturada, insaturada) e de carboidratos com a mortalidade total e cardiovascular em 18 países diferentes.

Detalhes metodológicos

  • Estudo observacional. Avaliou 135.335 pacientes.
  • Foram incluídos pacientes entre 35 e 70 anos de 18 países diferentes, incluindo países em desenvolvimento (ex: Brasil, África do Sul, Índia) e desenvolvidos (ex: USA, Canadá).
  • Os dados eram colhidos através de questionários alimentares. Isso podia ocorrer tanto com um indivíduo (ex: seu josé, preencha aqui o que o senhor comeu em tal período, em média), em família (ex: seu José, preencha aqui o que o senhor, seus filhos e sua esposa comeram, em média, em tal período).
  • Vários outros dados eram coletados para poder depois ajustar os resultados: renda pessoal/familiar, grau de educação, histórico de tabagismo ou de consumo etílico, uso de medicações, medidas antropométricas (peso, altura, circunferência abdominal, etc).
  • O follow-up era feito a cada 3 anos (3, 6 e 9 anos).
  • Os pesquisadores usaram dados específicos de cada país para converter as informações em nutrientes.
  • Endpoint primário: mortalidade geral + eventos cardiovasculares (morte por causa cardiovascular, IAM, AVC ou insuficiência cardíaca).
  • Os pctes eram seguidos anualmente por contato telefônico ou por consulta.
  • O seguimento médio foi de 7,4 anos.

Resultado

  • Resposta à pergunta principal: foi observado diminuição da mortalidade total quando comparado o consumo maior de gordura (incluindo seus componentes, gordura saturada e insaturada) com o consumo menor. O mesmo foi visto com o consumo de proteínas. Já em relação aos carboidratos, foi observada relação inversa (maior consumo de carboidrato relacionou-se com maior mortalidade) quando se passava além do valor de 60% das calorias do dia.
  • A diminuição de mortalidade correlacionou-se basicamente com redução de mortalidade não-cardiovascular. O único componente que se associou com redução de algum desfecho cardiovascular foi o consumo aumentado de gorduras saturadas o qual esteve associado a menor risco de AVC.
  • Os pesquisadores avaliaram também a influência que teria substituir uma parte do consumo calórico de carboidrato para outro componente. O que observaram foi que ao substituir cada 5% de calorias de carboidrato pelos mesmos 5% de calorias de gorduras poliinsaturadas a mortalidade caía em 11%. O mesmo não foi observado ao se fazer esta substituição por gordura saturada, monoinsaturada ou por proteína.

Opiniões pessoais:

  • OK. Resumindo, baseado nesse estudo, vou orientar meus pctes a cortarem carboidratos da dieta, comer muita proteína e gordura saturada, certo? Basicamente, vou dizer: meu amigo, vá agora para uma churrascaria e coma só picanha pura, não é? Longe disso. Vamos por partes.
  • Sempre que achamos algum resultado positivo em um estudo, temos que avaliar se ele é resultado de um dos 3 fatores: acaso, viés ou realidade. Os valores de p encontrados em relação à mortalidade geral (muitos de 0,0001) tornam o acaso pouco provável (0,01% de chance, para ser mais preciso). O grande problema deste estudo são os vieses ou erros sistemáticos. Vamos a eles.
  • Primeiro, os pesquisadores não separaram os carboidratos em subtipos. Uma coisa é ingerir 60% de suas calorias de batata frita. Outra coisa é ingerir estas mesmas calorias na forma de pão integral e arroz integral, por exemplo. Esse dado realmente era crucial para podermos imputar este papel nocivo aos carboidratos como classe (pouco provável) ou a um determinado subgrupo.
  • Os grupos que menos consumiam carboidratos no estudo ingeriam cerca de 50% de suas calorias deste nutriente. O estudo não observou benefícios em reduzir o consumo de carboidratos abaixo deste limite. Assim, os próprios pesquisadores recomendam na discussão que se evite dietas com valores abaixo de 50% de calorias de carboidratos. Então se alguém vir lhe dizer que está cortando tudo de carboidrato da dieta baseado neste estudo, peça para ler a própria recomendação dos autores: “However, the absence of association between low carbohydrate intake (eg, <50% of energy) and health outcomes does not provide support for very low carbohydrate diets. Importantly, a certain amount of carbohydrate is necessary to meet short-term energy demands during physical activity and so moderate intakes (eg, 50–55% of energy) are likely to be more appropriate than either very high or very low carbohydrate intakes.
  • Outro possível viés em relação aos carboidratos: não se pode excluir a possibilidade de pessoas de menor status sócio-econômico terem consumido mais este nutriente e de terem tido maior mortalidade não pela dieta em si, mas pelo contexto em geral (menor acesso a serviços de saúde, por exemplo). Opa, mas os pesquisadores ajustaram estes dados para diversas variáveis como renda, grau de escolaridade, etc. Sim, fizeram. A questão é que, como eles mesmos colocam na discussão, estes ajustes feitos podem não ser 100% eficazes, deixando passar algum fator de confundimento. Sabe-se que pessoas de renda mais baixa tendem a priorizar o consumo de carboidratos no lugar de proteína e gordura simplesmente porque os primeiros costumam ser mais baratos e trazer boa saciedade.
  • OK, encerrada a parte do carboidrato e antes de partir para as gorduras, é importante chamar a atenção para um ponto crucial do estudo: o questionário dietético era realizado apenas no começo do estudo. Dois problemas aí. Primeiro, como dito, era um questionário. Já está bem documentado que perguntar a uma pessoa o que ela costuma comer pode gerar uma série de falhas de aferição. Simplesmente as pessoas não são tão boas em lembrar com detalhes todas as refeições. Além disso, a alimentação pode mudar bastante ao longo dos dias. A sua dieta em um dia de domingo provavelmente é bem diferente do que costuma comer nos dias de semana, por exemplo. Por fim, fazer o questionário apenas 1x e acompanhar o pcte durante mais de 7 anos não parece ser o meio mais confiável de se ter dados confiáveis sobre a alimentação de alguém. Não sei vocês, mas a minha dieta atualmente é bem diferente da época em que eu era residente de cardiologia anos atrás.
  • E em relação às gorduras? Os dados do estudo que mais chamaram a atenção foram justamente a redução de mortalidade total com o consumo de gordura total e seus componentes (saturada e insaturada). Redução de desfechos com consumo de gordura poliinsaturada e monossaturada não é novidade. Vários estudos já sugeriram isto. O estranho realmente são os dados em relação à gordura saturada. Vamos a eles.
  • Primeiro, nota-se uma redução de mortalidade geral com o consumo de gordura saturada até chegar a um nível de cerca de 6-8%. Após isto, atinge-se praticamente um platô. De fato, a redução do risco CV no grupo que consumia cerca de 9,5% de calorias deste nutriente foi de 15% e o do grupo com maior consumo (13,2%) foi de 14%. Ou seja, pelos próprios dados do estudo, não há porque indicarmos um consumo amplo de gordura saturada. Já os pacientes que tiveram consumo baixo de gordura saturada (entre 2% e 7%, em média) tiveram mortalidade estatisticamente igual.
  • Resumo da ópera: o que este estudo vai alterar na minha prática clínica e nas minhas decisões pessoais sobre dieta? Sinceramente, muito pouco. Todos já sabemos que consumo de carboidratos refinados (ex: doces, bebidas adoçadas, etc) é ruim para a saúde. Provavelmente foram estes carboidratos que elevaram mortalidade no estudo, apesar de não podermos afirmar categoricamente. As diretrizes brasileiras atuais já recomendam consumir <65% de calorias na forma de carboidratos, preferindo os encontrados em alimentos como cereais integrais, arroz integral, etc. Segue a mesma recomendação. Em relação às gorduras, as diretrizes já recomendam o consumo preferencial de gorduras insaturadas. Isto é corroborado inclusive por este estudo ao sugerir que a substituição de carboidratos por gorduras poliinsaturadas tem o potencial de reduzir risco. E em relação às gorduras saturadas? Baseado em um estudo com vários potenciais vieses e que não mostrou benefício de consumo em consumir >10% de calorias deste nutriente em relação a um valor de cerca de 9%, como recomendado pelas diretrizes (<10%) me parece prematuro mudar a conduta em relação aos nossos pacientes. Até porque na mente da maioria destes ficaria a mensagem: pode comer gordura saturada à vontade, o que de fato não podemos inferir mesmo por um estudo como este. Mas o que de fato o estudo faz é levantar mais uma vez a discussão sobre os níveis ideais de consumo de gorduras saturadas. Será 10%? 12%? 15%? Apenas um ensaio clínico grande para responder de forma definitiva a esta pergunta.

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Sobre o autor

Eduardo Lapa

Editor-chefe do site Cardiopapers
Especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela SBC

1 comentário

  • Essa “gordurofobia” é que está matando as pessoas, com base em estudos falaciosos de Ancel Keys.
    Consumir 65% de carboidratos? É uma piada. Não existe carboidrato essencial. O proprio organismo produz o carboidrato que necessitamos.
    Quem quer aprender mesmo sobre o assunto vá estudar com o Dr. Lair Ribeiro, o maior cardiologista brasileiro, que não é convidado para os congressos de cardiologia por dizer a verdade.

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