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Paradoxo da obesidade: existe mesmo ou é mito?

Escrito por Ferdinand Saraiva

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Nos primeiros anos da década de 2000, estudos observacionais sugeriram que índices de massa corporal (IMC) mais elevados poderiam ter efeito protetor na mortalidade em várias condições médicas, entre as quais a insuficiência cardíaca (IC).

Diversos trabalhos demonstraram melhor prognóstico nos pacientes obesos com IC, ou, ao menos, não evidenciaram excesso de mortalidade nos indivíduos com sobrepeso ou obesos (Horwich, 2001; Mosterd,, 2001, em análise do estudo Rotterdam; Lissin, 2002; Davos et al, 2003; Curtis et al, 2005, em análise do estudo DIG; Fonarow et al, 2007, em análise do registro ADHERE). Da mesma forma, a perda de peso significativa esteve associada a um aumento de mortalidade (Zamora et al, 2016).

A partir destes e de outros dados, surgiu o conceito de “paradoxo da obesidade” (“epidemiologia reversa”), isto é, conquanto a obesidade representa fator de risco para o desenvolvimento da insuficiência cardíaca, pode ser protetora e associada a maior sobrevivência quando a doença já está instalada.

Esse paradoxo parece existir não apenas para a insuficiência cardíaca, mas para a doença cardiovascular de forma geral. Uma metanálise de estudos observacionais em doença arterial coronariana com mais de 250 mil pacientes, com um seguimento médio de 3.8 anos, evidenciou, em relação aos pacientes com IMC dentro da normalidade, uma menor mortalidade nos pacientes com sobrepeso (RR 0.88 [0.81-0.94] , nenhum excesso de mortalidade nos pacientes com IMC entre 30 e 35 (RR 0.93 [0.85-1.03]) e aumento de mortalidade cardiovascular (RR 1.88 [1.05-3.34]) apenas nos pacientes com IMC maior ou igual a 35 (Romero-Corral et al. Lancet 2016).

Algumas explicações foram propostas para esse fenômeno: pacientes com maior peso poderiam ter uma melhor reserva metabólica para tolerar uma condição inflamatória com catabolismo elevado, como é a IC; os valores mais altos de pressão arterial e maior volume de distribuição dos obesos poderiam implicar em melhor tolerância ao tratamento medicamentoso; poderia haver diferentes etiologias entre os pacientes magros e obesos ou, ainda, uma perda de peso não-intencional mais acentuada nos pacientes mais graves antes da inclusão nos estudos.

De qualquer forma, dois novos estudos trazem dados que desafiam o “paradoxo da obesidade”.

Composição Corporal e Índice de Massa Corporal

Medina-Inojosa e colaboradores (Journal of American Heart Association, maio de 2018) acompanharam, por um período médio de 3.9 anos, 717 pacientes que foram encaminhados para reabilitação cardíaca após algum evento ou procedimento coronariano e submetidos a pletismografia para análise de percentual de gordura. Neste intervalo, observaram 201 eventos cardiovasculares (morte, IAM ou AVC não fatal e revascularização miocárdica). Quando ajustado para potenciais confundidores, o índice de massa corporal não foi associado com piores desfechos, mas o percentual de gordura e a massa magra, sim.

O risco de eventos foi bem maior quando se comparou o quartil de maior percentual de gordura (HR 1.89, IC 95% 1.30-2.77, em comparação ao grupo de menor percentual de gordura) e bem menor no quartil com maior massa magra (HR 0.53, IC 95% 0.35-0.2, em comparação ao grupo com menor massa magra).

Embora este não seja um estudo de insuficiência cardíaca, é um estudo de pacientes com doença cardiovascular estabelecida e chama a atenção para o fato de que, talvez, nossa avaliação esteja incompleta: medidas de composição corporal podem ser mais importantes que o IMC isoladamente para a definição de prognóstico – sobretudo pela classificação incorreta de um indivíduo com maior massa magra como “sobrepeso” ou “obeso”.

Estudos Observacionais e a História Natural da Doença

Khan e colaboradores (JAMA Cardiology, fevereiro de 2018) fizeram a análise da incidência de doença cardiovascular a partir de dados populacionais de 10 coortes norte-americanas, com um total de 3.2 milhões de pacientes-anos acompanhados entre 1964 e 2015. Todos os pacientes eram inicialmente livres de doença cardiovascular.

Os resultados chamam a atenção para o desenvolvimento bem mais precoce de doença cardiovascular nos indivíduos obesos (em média 7.5 anos mais cedo para os homens e 7.1 anos para as mulheres com obesidade mórbida em relação ao IMC normal), acompanhada de uma redução na longevidade também bastante expressiva, mas de menor intensidade (5.6 anos para os homens e 2 anos para as mulheres).

Resumo:

  • Pelo exposto acima, o “paradoxo da obesidade” se desfaz: a obesidade leva à doença cardiovascular muito mais precoce (maior incidência); menor longevidade (maior mortalidade); e uma maior proporção da vida com doença cardiovascular (um aumento de morbidade real, que, entretanto, simula ser um “fator protetor”, quando o estudo é realizado levando em consideração o aparecimento dos sintomas e descompensações e não a história natural da doença).

Referências

Mosterd A, Cost B, Hoes AW et al. The Prognosis of Heart Failure in the General Population: the Rotterdam Study. European Heart Journal, 2001; 22(15):1318-27.

Horwich TB, Fonarow GC, Hamilton MA et al. The Relationship between Obesity and Mortality in Patients with Heart Failure. JACC, 2001; 38(3):789-795.

Lissin LW, Gauri AJ, Froelicher VF et al. The Prognostic Value of Body Mass Index and Standard Exercise Testing in Male Veterans with Congestive Heart Failure. Journal of Cardiac Failure, 2002; 8(4):206-215

Davos CH, Doehner W, Rauchhaus M et al. Body Mass and Survival in Patients with Chronic Heart Failure Qithout Cachexia: The Importance of Obesity. Journal of Cardiac Failure 2003, 9(1):29-35.

Curtis JP, Selter JG, Wang Y et al. The Obesity Paradox – Body Mass Index and Outcomes in Patients with Heart Failure. Arch Inter Med, 2005;165(1):55-61

Fonarow GC, Srikanthan P, Costanzo MR et al. An Obesity Paradox in Acute Heart Failure: Analysis of Body Mass Index and In-Hospital Mortality for 108.297 Patients in the Acute Decompesated Heart Failure National Registry. American Heart Journal, 2007; 153(1):74-81

Zamora E, Diez-Lopez, Lupon J et al. Weight Loss in Obese Patients with Heart Failure. J Am Heart Association, 2016; 5(3):e468

Romero-Corral A, Montori VM, Somers VK et al. Association of Bodyweight with Total Mortality and with Cardiovascular Events in Coronary Artery Disease: a Systematic Review of Cohort Studies. The Lancet, 2006; 368(9536):666-78

Medina-Inojosa JR, Somers VK, Thomas RJ et al. Association Between Adiposity and Lean Mass with Long-Term Cardiovascular Events in Patients with Coronary Artery Disease: No Paradox. J Am Heart Association, 2018; 7:e7505

Khan SS, Ning H, Wilkins JT et al. Association of Body Mass Index with Lifetime Risk of Cardiovascular Disease and Compression of Morbidity. JAMA Cardiology 2018;3(4):280-7

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Sobre o autor

Ferdinand Saraiva

Residência em Clínica Médica e Cardiologia pelo Hospital Universitário Onofre Lopes/UFRN.
Plantonista da UTI do Hospital Promater e do Pronto-Atendimento do Hospital Rio Grande.

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