Insuficiência Cardíaca

Qual o papel da digoxina no tratamento da insuficiência cardíaca?

Escrito por Jefferson Vieira

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No passado, a insuficiência cardíaca (IC) era vista como um distúrbio caracterizado por retenção hídrica e falha de bombeamento sanguíneo e o objetivo do tratamento era o alívio sintomático através do uso de diuréticos e agentes inotrópicos, como a digoxina, mas sem impacto sobre mortalidade. Apesar de mais de 200 anos de experiência clínica com a digoxina, um glicosídeo cardiotônico derivado da planta Digitalis lanata, ela continua sendo uma das drogas mais controversas no tratamento da IC.

A segurança da digoxina foi contestada pela primeira vez na década de 70 com base em várias análises retrospectivas que associaram o uso de digoxina com aumento da mortalidade. Três ensaios clínicos prospectivos, multicêntricos, randomizados e duplo-cegos, então, forneceram nos anos 90 o embasamento científico de eficácia e segurança da terapia com digoxina na IC: o PROVED, o RADIANCE e, principalmente, o DIG. Esses estudos demonstraram que, em pacientes com IC com fração de ejeção reduzida (ICFER), a digoxina foi associada a melhora da classe funcional, alívio de sinais e sintomas de IC e redução de hospitalizações por todas as causas e por IC. Embora os estudos não tenham demonstrado benefício da digoxina sobre mortalidade, a análise secundária do banco de dados do DIG mostrou benefícios maiores em subgrupos de alto risco que incluiu pacientes com classes funcionais III ou IV, FE < 25%, e/ou relação cardiotorácica > 55%.

Apesar dos benefícios descritos, o uso da digoxina vem diminuindo progressivamente nos últimos anos. Nos EUA, entre Janeiro de 2005 e Junho de 2014 as taxas de prescrição de digoxina na alta hospitalar caíram de 33,1% para 10,7% em pacientes com ICFER. A razão para isso é que a digoxina tem uma janela terapêutica muito estreita, na faixa de 0,5 a 0,9 ng/mL, e há evidência de maior mortalidade em subgrupos de risco para intoxicação digitálica como mulheres, idosos e pacientes com insuficiência renal. No DIG, a incidência de hospitalização por suspeita de intoxicação digitálica foi duas vezes maior nos pacientes tratados com digoxina, apesar de a taxa total ter sido relativamente baixa (ou seja, 2% vs. 0,9%).

As diretrizes de IC recomendam o uso de digoxina em pacientes com ICFER, sintomáticos apesar da terapia otimizada e em ritmo sinusal, com objetivo de reduzir hospitalizações por IC (recomendação moderada IIa-B na americana e fraca IIb-B na européia). Também há uma indicação informal da digoxina como terapia adjuvante no controle da frequência cardíaca em pacientes com fibrilação atrial (FA) de alta resposta ventricular quando nenhuma outra opção terapêutica puder ser empregada. Na prática, análises observacionais indicam que as principais motivações para médicos prescreverem digoxina na ICFER tem sido a presença de FA, DPOC, diabete melito, CDI, hipotensão e função renal preservada. No entanto, não há dados randomizados sobre eficácia e segurança da digoxina em pacientes com FA (no DIG, por exemplo, FA era critério de exclusão).

Recentemente, alguns estudos tem demonstrado achados controversos sobre o risco da digoxina em portadores de FA. Já apresentamos aqui no Cardiopapers os resultados do maior trabalho observacional sobre digoxina e FA, conduzido pelo Dr. Renato Lopes, que mostrou aumento do risco de morte em 19% para cada 0,5 ng/mL de elevação na digoxinemia.

Contraindicações: a digoxina deve ser evitada na presença de bradicardia, bloqueio AV, doença do nó sinusal sem marcapasso e arritmias ventriculares complexas.

Como prescrever: A terapia com digoxina deve ser iniciada e mantida com uma dose de 0,125 a 0,25 mg por dia. Em subgrupos de risco para intoxicação digitálica (vide texto), doses mais baixas como 0,125 mg em dias alternados podem ser prescritas. Doses maiores que 0,5 mg, assim como doses de ataque, não são indicadas. Recomenda-se uma concentração sérica de digoxina < 1 ng/ml, preferencialmente na faixa entre 0,5 a 0,9 ng/mL.

Opinião: Pacientes com ICFER apresentam altas taxas de hospitalização e morte, e a digoxina tem várias propriedades que a tornam uma boa opção em pacientes nos estágios avançados da doença. É o único inotrópico que, além de ser oral, aumenta o débito cardíaco e reduz a pressão capilar pulmonar sem causar aumento na frequência cardíaca ou redução da pressão arterial. Os ensaios clínicos randomizados com a digoxina são antigos e foram realizados em uma época anterior aos estudos com betabloqueadores. Na falta de estudos randomizados atualizados, só nos resta avaliar de forma criteriosa os estudos observacionais disponíveis. Assim, a digoxina pode ser considerada em pacientes com ICFER que permanecem sintomáticos apesar da terapia otimizada, sob monitorização dos níveis séricos entre 0,5 a 0,9 ng/ml e, preferencialmente, em ritmo sinusal.

Nota: No estudo derivado do DIG, o DIG-PEF, o uso de digoxina em doentes com IC com fração de ejeção preservada (ICFEP) não diminuiu mortalidade nem hospitalização e, portanto, não está indicado em nenhuma diretriz.

CURIOSIDADE CULTURAL: já ouviu falar que a fase amarelo do pintor Van Gogh pode ter sido fortemente influenciada pelo uso de digital? Para ler mais sobre o assunto, veja este link.

Patel N., Ju C., Macon C., et al. (2016) Temporal trends of digoxin use in patients hospitalized with heart failure: analysis from the American Heart Association Get With The Guidelines-Heart Failure Registry. J Am Coll Cardiol HF 4:348–356.

Lopes R.D. Digoxin And Mortality in Patients With Atrial Fibrillation With and Without Heart Failure: Does Serum Digoxin Concentration Matter? American College of Cardiology (ACC) 2017 Scientific Sessions.

 

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Sobre o autor

Jefferson Vieira

Residência em Cardiologia pelo Instituto de Cardiologia/RS
Especialista em Cardiologia pela SBC
Especialista em Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco pelo InCor/FMUSP
Doutor em Cardiologia pela FMUSP
Médico-assistente do programa de Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco do Hospital do Coração de Messejana

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