Coronariopatia Terapia Intensiva Cardiológica

Quando transfundir paciente em pós-operatório de cirurgia cardíaca?

cirurgia cardíaca de lesão de tronco de coronária esquerda
Escrito por Eduardo Lapa

Esta publicação também está disponível em: Português

Quando transfundir um paciente em pós-operatório de cirurgia cardíaca? Existe um cutoff específico a partir do qual tenho que prescrever infusão de concentrado de hemácias? Transfundir nesta situação muda algo no desfecho do paciente? Estas são perguntas frequentemente feitas por quem trabalha em UTIs. Para tentar responder estes questionamentos, esta semana foi publicado o estudo TRICS (The Transfusion Requirements in Cardiac Surgery III trial).

Contexto:

  • Transfusão sanguínea já mostrou em vários trabalhos ter potenciais efeitos negativos como aumento do risco de infecções e aumento da incidência de insuficiência renal aguda. Por outro lado, anemia relevante em pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca em teoria pode ser deletéria ao piorar hipóxia tecidual.

Pergunta principal do trabalho:

  • Avaliar se uma estratégia mais restritiva de transfusão de concentrado de hemácias (CH) é não inferior à estratégia liberal em pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca considerados como de risco moderado ou alto de mortalidade pela avaliação pré-operatória.

Detalhes metodológicos

  • Ensaio clínico, randomizado, open label (ou seja, os profissionais de saúde sabiam em que grupo o paciente estava, se liberal ou restritivo)
  • Foram incluídos pacientes com >18 anos que iam ser submetidos à cirurgia cardíaca e que possuíam Euroscore I com 6 pontos ou mais (o que prediz uma mortalidade intra-hospitalar >4%). Entre os principais critérios de exclusão estavam: gestação, pacientes que se recusavam a receber sangue e pacientes submetidos a transplante cardíaco.
  • O grupo da estratégia restritiva recebia CH se a hemoglobina (Hb) ficasse abaixo de 7,5 g/dL durante a cirurgia ou no pós-operatório. Já o grupo liberal recebia sangue se a Hb ficasse abaixo de 9,5 g/dL na UTI ou abaixo de 8,5 g/dL quando o paciente já estivesse na enfermaria após receber alta da UTI.
  • Endpoint primário: desfecho composto de morte + IAM não-fatal + AVC + insuficiência renal aguda necessitando de hemodiálise durante a internação hospitalar.
  • Foram randomizados 5.234 pctes mas foram incluídos na avaliação final 4.860 apenas já que alguns não foram submetidos à cirurgia, retiraram o consentimento ao estudo ou outros tipos de intercorrências.

Resultado

  • Resposta à pergunta principal: a estratégia restritiva foi não-inferior à liberal. A taxa de eventos foi de 11,4% no primeiro grupo e de 12,5% no segundo grupo (sem diferença significante).
  • Também não houve diferença significante entre os componentes individuais do desfecho composto.
  • 72,6% dos pctes do grupo liberal receberam CH enquanto que no grupo restritivo este número foi de 52,3%. Os pctes que fizeram transfusão no grupo restritivo receberam em média 2 CH enquanto que no grupo liberal este número subiu para 3 CH.
  • Em relação a desfechos secundários que foram avaliados, a única diferença basicamente foi uma menor permanência em UTI no grupo restritivo mas esta vantagem foi clinicamente irrelevante (caiu de 2,1 dias para 1,9 dias – algo como 4 ou 5 horas a menos na UTI)

Opiniões pessoais:

  • Esse estudo tem impacto na nossa prática clínica? Sim, já que ratifica os achados já mostrados em outros trabalhos como o TRACS realizado no Incor de que podemos ser mais conservadores em relação à transfusão de CH em pacientes em pós-op de cirurgia cardíaca. Algumas vantagens do TRICS em relação ao TRACS são o n bem maior (4.860 pctes x 502 pctes) e o fato de ter sido multicêntrico.
  • O estudo tem limitações? Sim. Por exemplo, o estudo não foi mascarado em relação à intervenção. Mas na prática isso realmente fica difícil de ser feito uma vez que a equipe de saúde que está cuidando do paciente tem acesso aos resultados dos níveis de Hb do paciente além de obviamente notar se um paciente está ou não recebendo CH. Se fosse uma medicação incolor, por exemplo, você poderia mascarar porque o médico não saberia se o que está sendo infundido é placebo ou a medicação, por exemplo. Já com CH isso não pode ser feito. E daí?
  • A avaliação primária do estudo foi feito por per protocol e não por intention to treat. Não sabe o que é isso? Leia o artigo que aparece no primeiro link desta página, item 4. De toda forma, em trials de não inferioridade costuma se usar as duas análises, intention to treat e per protocol (vide este link). Ou seja, isso não parece complicar muito o meio de campo.

Resumo da ópera:

  • Quer dizer então que se estiver com um paciente em pós-op de cardíaca só faço sangue no momento em que o Hb ficar abaixo de 7,5, certo? Errado! O trial não foi desenhado para delimitar um ponto de corte específico que representa o “sweet spot” para transfundir um pcte. O estudo serve para fazer uma prova de conceito. Como assim? Para ver em detalhes o que é isto, leia este texto. Mas de forma resumida, o conceito avaliado por este estudo é checar se transfundir menos o pcte em pós-op de cardíaca é melhor do que transfundir mais. OK. Para isso, tenho que delimitar pontes de corte para deflagrar a transfusão. Se colocar pontos de corte muito próximos um do outro (ex: 9 g/dL x 8 g/dL), há chance grande de isso não gerar diferença clínica para o paciente. Além disso, precisaria de uma quantidade muito grande de pacientes para detectar uma diferença pequena que por ventura existisse. Por isso tende-se a colocar pontos mais distantes entre si. Foi o que foi feito e mesmo assim não mostrou diferença relevante. OK. Mas será que transfundir com níveis de Hb inferiores a 7 ou a 6 também não teria sido igual? Pois é. Não temos como saber pelo trabalho. Desta forma, se você estiver com um paciente em pós-op de cardíaca com Hb de 7 mas que está evoluindo clinicamente muito bem e que, por exemplo, já tinha um Hb baixo no pré-op (exemplo: 9 g/dL) posso muito bem decidir de forma individualizada que aquele paciente não precisa de hemotransfusão naquele momento. Da mesma forma, posso estar com um paciente que entrou na cirurgia com Hb de 15 g/dL, que sangrou muito na sala e que chega na UTI com Hb de 8,5 g/dL, nora em dose alta, eco à beira do leito com ventrículo esquerdo hipercontrátil nitidamente indicando hipovolemia. Neste caso posso muito bem deflagar a hemotransfusão com níveis de Hb acima de 7,5 g/dL. Medicina baseada evidências não é para ser uma coisa engessada. O bom senso clínico continua sendo primordial.

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Sobre o autor

Eduardo Lapa

Editor-chefe do site Cardiopapers
Especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela SBC

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