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Usar estatinas em idosos para prevenção primária: faz sentido?

Escrito por Daniel Gomes

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Pessoas muito idosas, com idade a partir de 75 anos, representam o segmento etário que mais cresce proporcionalmente nos dias atuais. Se você é profissional de saúde, tenha certeza de que cada vez mais atenderá pacientes nesta faixa etária. Nessa população, a prevalência e incidência de doenças cardiovasculares (DCV) aumenta significativamente e o prognóstico destas tende a ser pior, com maior chance de complicações e desfechos fatais. Porém, a despeito do grande impacto das DCV nos idosos, são escassas ainda as evidências científicas que norteiam as estratégias de prevenção e tratamento dessas doenças nos pacientes de mais idade.

Sabemos que as estatinas têm papel muito bem estabelecido na prevenção secundária de doença cardiovascular aterosclerótica, com redução significativa de novos eventos clínicos, inclusive naqueles com idades mais avançadas. Quanto a isso, não tem muito o que discutir: se o seu paciente, mesmo aquele muito idoso, já apresenta uma doença aterosclerótica estabelecida (antecedente de IAM ou angina, AVC ou AIT, doença arterial periférica sintomática), dificilmente ele não será candidato a usar uma estatina.

Um ponto, entretanto, que precisa ser melhor esclarecido é o papel das estatinas para a prevenção primária de doença cardiovascular aterosclerótica nos muito idosos. É aí que surgem as controvérsias e um grande debate. Nesse cenário, ainda não há evidências robustas de benefícios, especialmente porque estes pacientes foram pouco representados nos principais ensaios clínicos com estatinas até aqui realizados. Muito do conhecimento que temos sobre a eficácia e segurança dessas drogas nessa população deriva de análises de subgrupos e estudos observacionais limitados. Essa incerteza explica a divergência nas recomendações de diferentes diretrizes sobre prevenção de DCV.

Há poucos dias, porém, um estudo publicado no JAMA trouxe novos, interessantes e até mesmo surpreendentes dados acerca do uso de estatinas para prevenção primária em pacientes muito idosos. Trata-se de uma grande coorte retrospectiva, que procurou avaliar a associação entre o início de estatinas e a ocorrência de desfechos clínicos em indivíduos com idade a partir de 75 anos e isentos de doença aterosclerótica estabelecida. O estudo incluiu uma expressiva amostra de participantes (pouco mais de 326.000, das quais cerca de 57.000 iniciaram estatinas), de diversos centros americanos, com idade média de 81 anos, e composta predominantemente por homens (97%) e pessoas de cor branca (91%) e com passado de tabagismo (72%). Os participantes foram acompanhados, em média, por 6.8 anos.

Mas, afinal, o que foi identificado nesse estudo? Observou-se que o uso de estatina, quando comparado ao não uso, esteve associado a menores mortalidade por todas as causas e mortalidade cardiovascular, com Hazard Ratio de 0,75 (IC 95% 0.74-0.76) e 0.80 (IC 95% 0.78-0.81), respectivamente. Em outras palavras, aqueles que iniciaram estatinas tiveram uma redução relativa de mortalidade por todas as causas de 25% e de mortalidade cardiovascular de 20%.

Um dado talvez ainda mais interessante nesse estudo foi que essa redução de mortalidade ocorreu precocemente. Vale lembrar que, diferente da prevenção secundária, na qual o benefício com o uso de estatinas costuma ser percebido de forma precoce (dentro de 1 a 2 anos após início da medicação), na prevenção primária, tal benefício usualmente tende a demorar mais tempo para ocorrer (em geral, de 2 a 5 anos, ou até mais). Nesse novo estudo do JAMA, porém, foi evidenciada redução relativa de mortalidade de 32% já nos primeiros 2 anos. Por sinal, esse conceito de time to benefit (tempo para benefício) é especialmente relevante quando estamos avaliando intervenções em população idosa.

Outro ponto interessante do estudo foi que mesmo naqueles indivíduos bem idosos, com idade superior a 90 anos (isso mesmo, 90 anos), o benefício de redução de mortalidade foi mantido. Além disso, outro aspecto foi que o estudo não excluiu da análise indivíduos com comorbidades, como demência e câncer. Essa inclusão, aliás, é algo que normalmente não acontece em ensaios clínicos. Portanto, ponto positivo para o estudo.

Diante desses resultados, esse estudo nos faz refletir que a idade cronológica por si só não deve ser critério para a não utilização de estatinas. Os pacientes muitos idosos são frequentemente subtratados, particularmente na prevenção primária, pois muitos médicos acreditam que sejam desnecessárias medidas preventivas “a essa altura do campeonato”. Se levarmos em consideração que, por vezes, a primeira manifestação de doença aterosclerótica em idosos pode ser morte súbita, logo entendemos a importância da prevenção primária nestes indivíduos.

“Ok, Daniel, então quer dizer que a partir de agora devo prescrever estatina para todo paciente muito idoso?” Calma que não é bem assim. Devemos lembrar que o estudo é apenas observacional e, como tal, tem menor poder analítico que um ensaio clínico e menor capacidade para testar hipótese. Além disso, o estudo incluiu praticamente apenas homens brancos. Se esses dados podem ser extrapolados para outra tipo de população, ainda não sabemos. E o que é mais importante atentar: devemos avaliar se nosso paciente em questão não é um idoso muito frágil ou portador de doença avançada, com expectativa de vida reduzida. Se for o caso, provavelmente o uso de estatina não trará nenhum benefício e agregará mais danos. Como sempre costumo dizer, quanto mais idoso, frágil e multimórbido for o seu paciente, mais necessário de faz individualizar condutas.

Há, pelo menos, dois importantes ensaios clínicos em andamento que avaliarão melhor o uso de estatinas nos muito idosos para a prevenção primária. São eles: o trial australiano STAREE (A Clinical Trial of Statin Therapy for Reducing Events in the Elderly) e o recém iniciado trial americano PREVENTABLE (PRagmatic EValuation of evENTs And Benefits of Lipid-lowering in oldEr Adults). Esperamos que tragam ainda mais clareza para definirmos melhor o real papel das estatinas nesse cenário. Mas ambos não terão resultados disponíveis nos próximos três anos. Enquanto isso, os achados interessantes do estudo aqui comentado devem ser considerados na hora de tomar a decisão se deve ou não iniciar ou manter estatina para seu paciente muito idoso.

Fonte: Orkaby AR et al, JAMA.2020;324(1):68-78

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