Miocardiopatias

Miocardite pós vacina da COVID-19 é mais branda que a de etiologia viral?

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A miocardite pós vacina da COVID-19 é, sem dúvidas, um assunto de interesse individual e saúde pública, logo é natural que se tente explorar todas as nuances do assunto. Como já vimos aqui em nosso portal, algumas vacinas de fato aumentam o risco dessa doença, mas mesmo assim esse risco foi menor quando comparado àqueles que contraem COVID-19 e não possuem imunização. Abrindo mais um parágrafo no capítulo dessa polêmica, ou melhor, de esclarecimentos a respeito desse tema, há um artigo do Journal of the American College of Cardiology1 que comparou o prognóstico, em 180 dias, daqueles que tiveram a miocardite pós-vacina com aqueles que tiveram a mesma enfermidade, mas de etiologia viral qualquer.

Esse foi um estudo do tipo coorte retrospectiva, realizado com a base de dados do sistema público de saúde de Hong Kong. Foi considerado que a enfermidade foi secundária à vacina se o paciente foi hospitalizado por miocardite até 28 dias depois da aplicação da BNT162bs (uma vacina baseada em RNA mensageiro da Pfizer® e BioNTech®), independentemente se foi depois da primeira, segunda dose ou reforço. Os casos de miocardite viral utilizados para comparação foram todos internados por essa doença no período pré-pandêmico (2000 a 2019). Os desfechos avaliados foram: mortalidade, realização de transplante cardíaco, necessidade de utilização do serviço de saúde após alta, desenvolvimento de insuficiência cardíaca ou cardiomiopatia dilatada. Foram excluídos pacientes menores de 12 anos, os que tinham histórico de COVID-19, aqueles com troponina negativa, assim como aqueles que já tinham alguma das enfermidades consideradas avaliadas no desfecho

Em Hong Kong, 3.979.103 indivíduos maiores de 12 anos receberam uma ou mais doses de vacina mRNA, obtendo-se 119 casos de miocardite consideradas relacionadas (2,61 casos para cada 100.000), mas apenas 104 entraram para o estudo após aplicação dos critérios de exclusão. Essa incidência foi semelhante a outro estudo conduzido em Israel2. Dos 1483 casos de miocardite viral do período pré-pandêmico, 762 deles foram selecionados para esse estudo. Dentre os casos associados ao uso da BNT162bs, 92,3% tinham recebido uma ou duas doses e apenas 7,7% tinham recebido a dose de reforço e, indo ao encontro da epidemiologia de outros estudos, a maioria eram homens com menos de 60 anos de idade (95,2%). A epidemiologia das miocardites de causa viral foi semelhante, ou seja, predominou em homens na mesma faixa etária (85,7%).

Apenas 1 indivíduo do grupo miocardite pós vacina da COVID-19 foi a óbito (1%, aproximadamente), enquanto que no grupo de etiologia viral houve 84 óbitos (11%) – isso se traduziu em um risco 92% menor (hazard ratio [HR]: 0,08 ; IC 95%: 0,01-0,57) para os pacientes vacinados. Nenhum paciente necessitou de transplante cardíaco no período estudado em ambos grupos. Um único caso de miocardiopatia dilatada e dois de insuficiência cardíaca surgiram no grupo miocardite pós vacina da COVID-19 ao passo que no outro obteve-se 28 (3,7%) e 93 (12,2%) para essas morbidades, respectivamente. Apesar de numericamente distantes, esses dois últimos dados não atingiram diferença estatística. Quanto ao uso do sistema de saúde após a alta, 21 (20,4%), 33 (32%) e 1 (1%) pacientes do grupo vacinal tiveram pelo menos uma visita em pronto socorro, hospitalização e admissão em UTI, respectivamente. No outro grupo, esses números foram respectivamente de 196 (28,4%), 224 (32,5%) e 6 (0,9%). Mais uma vez, para esse último desfecho avaliado, não teve diferença estatística entre os grupos. Foi observado ainda uma diferença no perfil de pacientes, no qual aqueles com miocardite viral, possuíam mais comorbidades (hipertensão, arritmias) e utilizavam mais medicamentos (estatina, betabloqueador, IECA, antiplaquetários).

Este foi um estudo que ratificou a impressão de outros da literatura3 a respeito da miocardite pós-vacina da COVID-19, que seriam casos mais brandos e de menor risco de mortalidade, embora este estudo seja aparentemente o primeiro que a compare diretamente com a mesma doença, só que de causa viral. A razão para estes achados não está estabelecida, mas  exposição ao antígeno via imunização seria mais breve.  Além disso, quando a causa é por vírus, pode haver uma invasão do miocárdio, causando injúria direta.  Por fim, o grupo de pacientes com miocardite viral possui mais comorbidades, o que também pode explicar as maiores incidências de mortalidade e desfechos não desejáveis.

São apontados algumas limitações e possíveis vieses nessa pesquisa. Primeiro que a seleção foi por pacientes hospitalizados, logo tendem a ser casos mais graves– para ambos lados. Segundo que pode ter ocorrido um certo excesso diagnóstico da condição relacionada a vacina meramente por maior vigilância desse diagnóstico. Terceiro que a comparação não foi com miocardite pelo próprio vírus da COVID-19, mas sim por qualquer vírus, e os autores se justificam dizendo que após o início das imunizações a taxa de infecção era muito baixa, quando ocorria o tempo do início da infecção não era tão claro.

Por ser uma coorte retrospectiva, conclusões definitivas não podem ser tiradas. Entretanto, há uma plausabilidade biológica e é um resultado em consonância com outros estudos na mesma linha. Considerando todos efeitos diretos, indiretos a curto e médio prazo conhecidos da infecção por COVID-19, aparentemente, a vacinação parece ser uma opção razoavelmente segura sob esse aspecto da miocardite e especialmente sob ponto de vista de saúde pública, mesmo que a dose a ser oferecida seja do tipo mRNA.

  1. Lai FTT, Chan EWW, Huang L, Cheung CL, Chui CSL, Li X, et al. Prognosis of Myocarditis Developing After mRNA COVID-19 Vaccination Compared With Viral Myocarditis. J Am Coll Cardiol. 2022;80(24):2255-65. (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0735109722071078?via%3Dihub)
  2. Witberg G, Barda N, Hoss S, Richter I, Wiessman M, Aviv Y, et al. Myocarditis after Covid-19 Vaccination in a Large Health Care Organization. N Engl J Med. 2021;385(23):2132-9.
  3. Goyal M, Ray I, Mascarenhas D, Kunal S, Sachdeva RA, Ish P. Myocarditis post SARS-CoV-2 vaccination: a systematic review. QJM. 2022.

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Sobre o autor

Gustavo Bregagnollo

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