Emergências

Hemorragia intracraniana em paciente com dupla antiagregação plaquetária: o que fazer?

Escrito por Humberto Graner

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Todos nós que lidamos com pacientes cardiopatas estamos familiarizados com a dupla antiagregação plaquetária (DAPT). Esta estratégia, que consiste basicamente na associação do ácido acetilsalicílico (AAS) a um inibidor P2Y12, está indicada em uma série de situações clínicas, sobretudo naquelas com substrato aterosclerótico.

No entanto, por detrás dos benefícios de proteção isquêmica conferida por esta associação, há um risco aumentado de sangramento muitas vezes negligenciado, sendo a hemorragia intracraniana (HIC) a mais grave delas. Mesmo sendo um evento relativamente incomum (cerca de 0,2 a 0,3% ao ano), as taxas de mortalidade por HIC relacionadas a agentes antiplaquetários permanecem muito altas, cerca de 60%.

  • Não me lembro de nenhum paciente que tenha tido HIC associada a antiplaquetários. Devo-me preocupar com este sangramento?

Uma revisão recente publicada no JACC chamou a atenção dos médicos para o fato de que a HIC associada a antiplaquetários não é tão incomum quanto se possa pensar. Embora infrequente, sua incidência cumulativa pode ser substancial, dado o grande número de pacientes com doenças cardiovasculares que utilizam essas medicações em todo o mundo.

Em 2019, cerca de 4,6 milhões de casos de sangramento intracerebral e subaracnoide ocorreram em todo o mundo, e foram responsáveis por ≈3,4 milhões de mortes e ≈77 milhões de anos de vida perdidos por incapacidade.

  • Toda hemorragia intracraniana é igual?

A HIC pode ser classificada de acordo com a localização do sangramento (intracerebral, subaracnoide, subdural e epidural) e o mecanismo (traumático vs não traumático).  Os pacientes tratados com agentes antiplaquetários têm maior probabilidade de apresentar HIC com complicações clínicas graves e pior prognóstico.

Digno de nota, o trauma é um mecanismo importante, muitas vezes não reconhecido, de HIC associada a antiplaquetários. Estes pacientes, mesmo quando apresentam um TCE aparentemente leve, podem manifestar HIC volumosas e potencialmente graves.

  • Para reduzir o risco de HIC, não seria melhor utilizar apenas monoterapia com AAS somente?

De fato, o risco de ICH é maior entre os pacientes tratados com DAPT em comparação com a monoterapia com AAS. Em uma meta-análise estudos randomizados comparando AAS + clopidogrel versus AAS + placebo, a terapia antiplaquetária dupla aumentou o risco de HIC em 42%. No entanto, em muitas ocasiões a DAPT é ainda é mandatória, e confere benefícios suplementares em termos de redução do risco de eventos isquêmicos.

Por outro lado, muitos ensaios clínicos recentes corroboram a possibilidade do uso estendido de terapia antiplaquetária dupla, independente do P2Y12 associado. Em todos eles (estudo DAPT, PEGASUS-TIMI 54, THEMIS), o risco de HIC foi significativamente maior no grupo que utilizou a associação por maior tempo.

  • Uma vez optado por fazer DAPT, há diferença entre os inibidores P2Y12 no risco de HIC?

Em estudos randomizados de DAPT, o risco de apresentar uma HIC foi numericamente maior quando eles eram tratados com prasugrel ou ticagrelor, comparado ao clopidogrel. No entanto, essa diferença não foi estatisticamente significativa. Nos ensaios clínicos comparando prasugrel versus clopidogrel, as taxas de HIC foram comparáveis. No entanto, no TRITON-TIMI 38, os pacientes em uso de prasugrel que tinham passado de AVC apresentaram risco inaceitável de HIC quando comparado a clopidogrel, motivo pelo qual aquela medicação foi restringida para uso nessa população.

Já no estudo PLATO, a incidência de HIC foi numericamente maior no grupo ticagrelor, mas sem significância estatística. Porém, os pacientes randomizados para receber AAS + ticagrelor eram mais propensos a apresentar HIC fatal do que aqueles tratados com AAS + clopidogrel (0,12% vs 0,01%; P= 0,02).

Por outro lado, por se ligar de forma reversível às plaquetas, o ticagrelor é o único inibidor P2Y12 com potencial de ter um agente reversor. De fato, o bentracimab é um anticorpo monoclonal que se liga ao ticagrelor e seu metabólito ativo com grande afinidade, e está sendo testado em um ensaio clínico multicêntrico, com resultados promissores em estudos de fase 1 e 2.

  • É possível identificar pacientes que tenham maior risco para HIC?

Os principais fatores de risco para HIC na vigência de tratamento antiplaquetário são: baixo peso corporal, idade avançada, etnia asiática, e história prévia de AVC ou AIT. Este último, aliás, é o principal fator de risco para hemorragia intracerebral em pacientes sob dupla terapia antiplaquetária. Para esta população, inclusive, dois escore de risco foram desenvolvidos para estratificar o risco de HIC: escore S2TOP-BLEED e o Intracranial-B2LEED3. No entanto, importante ressaltar que a capacidade discriminativa desses escores foi modesta (estatística-C entre 0,53 e 0,65). Além disso, esses escores não foram validados para pacientes com AVC isquêmico agudo, nos quais o benefício da DAPT na redução de isquemia recorrente é substancial nos primeiros 30 dias.

Independentemente, a maior parte das informações em DAPT vêm dos estudos de intervenção coronariana. Neste cenário, foram identificados vários modelos preditores de risco para HIC, sendo os mais importantes: sangramento prévio, uso crônico de anticoagulação oral, doença renal crônica (TFG estimada <30 mL/min), insuficiência hepática, anemia (hemoglobina <11 g/dL), trombocitopenia (<100.000/mL), e história de HIC e AVC isquêmico em 6 meses.

  • O que fazer quando um paciente com DAPT apresenta um sangramento intracraniano?

Todos os casos de HIC são considerados uma emergência médica e requerem atenção imediata. Isso inclui estabilização clínica, controle da pressão arterial, neuromonitorização intensiva e prevenção/tratamento de convulsões e hipertensão intracraniana. O neurocirurgião deve avaliar com vistas à realização de craniotomia descompressiva, quando indicada.

Atualmente, não há terapia eficaz que possa reverter rapidamente o efeito dos agentes antiplaquetários no contexto de sangramento. Mesmo a transfusão de plaquetas, ainda muito utilizada, tem resultados limitados: estudos in vitro sugeriram que esta estratégia poderia reverter parcialmente o efeito antiplaquetário do clopidogrel ou prasugrel, mas faltam dados in vivo, além de ser ineficaz na reversão dos efeitos do ticagrelor.

  • Quando a terapia antiplaquetária deve ser reiniciada para pacientes que apresentaram HIC? 

O risco de sangramento deve ser avaliado em relação ao benefício da proteção isquêmica no momento de se decidir sobre se e quando a terapia antiplaquetária deve ser reiniciada. O momento ideal para a reintrodução dos antiplaquetários após um episódio de HIC não está bem definido. O estudo RESTART randomizou pacientes que tiveram algum sangramento intracerebral para reiniciar ou suspender em definitivo os agentes antiplaquetários em uso. Em geral, os pacientes reiniciaram um antiplaquetário em monoterapia aproximadamente 2,5 meses após o evento hemorrágico, e nenhuma diferença na taxa de hemorragia intracerebral recorrente foi observada entre os grupos.

Esta informação vai ao encontro do fato de que, em vários ensaios clínicos, ter tido um AVC prévio (isquêmico ou hemorrágico) é um fator independente para HIC na vigência de terapia antiplaquetária dupla. Portanto, o uso de DAPT em pacientes que tiveram uma HIC deve ser evitado, a menos que existam circunstâncias atenuantes (por exemplo, paciente foi submetido a ICP com stent há menos de 30 dias).

Conclusões

  • HIC é infrequente, mas potencialmente grave e fatal em pacientes utilizando antiplaquetários.
  • A DAPT está associada a um risco 40% maior de HIC em comparação com o AAS isoladamente.
  • O risco de HIC associado a DAPT deve ser considerada cuidadosamente em pacientes de alto risco, como idosos e aqueles com AVC/AIT prévio.
  • Escores preditivos podem auxiliar a identificar estes pacientes de maior risco, melhorando a tomada de decisão compartilhada com pacientes e familiares.
  • A ocorrência de HIC é sempre uma emergência médica desafiadora. Atualmente, não existem agentes reversores que possam neutralizar o efeito antiplaquetário dos inibidores P2Y12, embora um agente reversor de ticagrelor esteja sendo avaliado em ensaios clínicos.

Referência:

https://www.jacc.org/doi/10.1016/j.jacc.2021.07.048

 

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Sobre o autor

Humberto Graner

Co-Editor do site Cardiopapers
Especialista em Cardiologia e Medicina Intensiva
Professor das Faculdades de Medicina da UFG e UniEvangélica (Goiás)
Doutor em Ciências pelo InCor-HCFMUSP
Fellowship em Coronariopatias Agudas pelo InCor-HCFMUSP
Coordenador do Pronto Atendimento do Hospital Israelita Albert Einstein - Unidade Goiânia (GO)
Pesquisador da ARO (Academic Research Organization) - Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo (SP)

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