Arritmia Valvopatias

Posso usar DOAC na FA com valvopatia reumática?

Escrito por Remo Holanda

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Dados de estudos pivotais têm mostrado a segurança e eficácia dos anticoagulantes orais diretos (direct acting oral anti-coagulants, DOAC) na fibrilação atrial (FA). Uma meta-análise de 4 ensaios clínicos randomizados mostrou que o uso de DOAC em comparação à varfarina resultou em redução de sangramentos maiores, AVC e de mortalidade1. Entretanto, estes estudos não incluíam pacientes com valvopatia reumática, sobretudo estenose mitral. Fica então a pergunta: posso usar DOAC na FA com valvopatia reumática?

Um estudo apresentado recentemente no congresso da European Society of Cardiology (ESC) 2022, em Barcelona, e publicado simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine, trouxe uma resposta provavelmente definitiva a esta pergunta2. No estudo INVICTUS, Connolly e cols. randomizaram 4565 pacientes com FA e valvopatia reumática (85% com estenose mitral) para rivaroxabana 20 mg/dia (15 mg/dia nos pacientes com clearance de creatinina < 50 mL/min) versus varfarina (dose ajustada para INR entre 2 e 3). Cerca de 56% tinham CHADS-VAsC ≥ 2 (o estudo permitia incluir pacientes com CHADS-VASC < 2 desde que o paciente tivesse estenose mitral). O desfecho primário do estudo foi o composto de AVC, embolia sistêmica, infarto ou morte de causa vascular. O estudo testou como hipótese primária se o uso de rivaroxabana seria não-inferior à varfarina para este desfecho.

O que o estudo mostrou? O uso da rivaroxabana resultou em um aumento do desfecho primário em relação à varfarina (8,21% versus 6,49% ao ano, respectivamente; hazard ratio [HR]  1,25; intervalo de confiança [IC] 95% 1,10-1,41; P < 0,001). Este aumento foi às custas de maior ocorrência de AVC (HR 1,37; IC 95% 1,00-1,89) e de mortalidade (HR 1,23; IC 95% 1,09-1,40) com a rivaroxabana. Não houve diferença entre os grupos na ocorrência de sangramento maior (HR 0,76; IC 0,51-1,15; P = 0,18). No grupo varfarina, o tempo na janela terapêutica (TTR; time in therapeutic range) aos 2 anos foi de 65,3%.

O que estes resultados sugerem e como devem ser interpretados? Quando estamos diante do resultado de qualquer estudo, sobretudo um tão surpreendente como este, três situações podem ocorrer. Esta pode ser a verdade, ou isto pode ser devido a um viés, ou devido ao acaso. O acaso não deve ser a principal explicação, uma vez que o estudo incluiu um número grande de pacientes, os resultados foram precisos (vide os IC 95%), e a diferença foi consistente em dois métodos estatísticos diferentes utilizados na análise. Em relação ao viés, quando um estudo não é duplo-cego (ou seja, tanto paciente como médico sabem o que o paciente toma), dois potenciais vieses podem ocorrer. Um seria o chamado viés de aferição, ou seja, o julgamento do desfecho (infarto, AVC, etc) pode ser influenciado pelo fato de o avaliador saber o que o paciente está tomando. Entretanto, dois fatos neste estudo praticamente descartam esta possibilidade. O primeiro foi o fato de o desfecho ter sido avaliado por um comitê de eventos clínicos que era cego à intervenção do estudo. O segundo foi o fato de ter havido uma diferença também em mortalidade, um desfecho que não é sujeito a este tipo de viés. O segundo potencial viés se chama viés de tratamento diferencial. Ele ocorre quando um grupo recebe outras intervenções que não as estudadas, ao longo do estudo, que possam influenciar o desfecho. No presente caso, os pacientes do grupo varfarina poderiam teoricamente ter contatos mais frequentes com os médicos pela necessidade de dosar o INR. No entanto, a diferença de tratamento teria de ser dramática para justificar tal impacto na mortalidade. Portanto, o mais provável é que tais resultados, por mais surpreendentes que possam ser, sejam a verdade. (Quer saber mais sobre isso? Confira o nosso Curso Cardiopapers de Medicina Baseada em Evidência: https://lp2.cardiopapers.com.br/mbe-matriculas-perpetuo-vitrine/)

 

E agora? Posso usar DOAC na FA com valvopatia reumática? A resposta é: não! Nesta população, o uso de DOAC não deve ser recomendado, devendo a anticoagulação ser feita com varfarina com ajuste de INR para 2,0 a 3,0. Isto não muda as diretrizes vigentes, que já desaconselhavam o uso de DOAC na FA com valvopatia reumática, sobretudo estenose mitral moderada a importante. Entretanto, o estudo INVICTUS traz uma grande contribuição ao demonstrar que não podemos extrapolar resultados de um tratamento para uma população não previamente estudada, e que a evidência deve sempre preponderar sobre a opinião pessoal. É por isso que nós precisamos mais de estudos clínicos randomizados!

 

 

REFERÊNCIAS

1- Ruff CT, Giugliano RP, Braunwald E, et al. Comparison of the efficacy and safety of new oral anticoagulants with warfarin in patients with atrial fibrillation: a metaanalysis of randomised trials. Lancet 2014; 383: 955-62.

2- Connolly SJ, Karthikeyan G, Ntsekhe M, et al. INVICTUS Investigators. Rivaroxaban in Rheumatic Heart Disease-Associated Atrial Fibrillation. N Engl J Med. 2022 Aug 28. doi: 10.1056/NEJMoa2209051. Epub ahead of print. https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2209051

 

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