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Atenção para os novos critérios diagnósticos de endocardite

Escrito por Humberto Graner

Esta publicação também está disponível em: Português

A endocardite infecciosa (EI) é uma doença cujo diagnóstico pode ser desafiador, dada sua apresentação clínica variável. Os critérios de Duke  são foram desenvolvidos para padronizar o diagnóstico e auxiliar na identificação da endocardite. Os critérios de Duke modificados têm alta sensibilidade (cerca de 80%) e alta especificidade (cerca de 99%) para o diagnóstico de EI. Isso significa que são muito bons tanto para identificar aqueles com a doença (sensibilidade) quanto para excluir corretamente aqueles que não a têm (especificidade). Isto é extremamente importante, pois o diagnóstico de endocardite é um gatilho para um tratamento muitas vezes agressivo e dispendioso, que pode incluir longos períodos de antibióticos e eventualmente cirurgia.

Um artigo publicado recentemente apresentou uma atualização dos critérios de diagnóstico para endocardite infecciosa, chamados de Critérios Duke-ISCVID 2023. Esses critérios foram desenvolvidos por um grupo de especialistas e incluem mudanças para melhorar a precisão diagnóstica e tratamento da endocardite.

Como são os critérios de Duke modificados?

Os Critérios de Duke modificados (até então vigentes) foram propostos em 2000, como uma revisão dos Critérios de Duke originais publicados em 1994. Eles dividem as evidências de endocardite infecciosa em “critérios maiores” e “critérios menores”, para então definir o diagnóstico em definida, possível ou mesmo descartada.

Critérios de Duke Modificados

Critérios Maiores:

1. Hemoculturas positivas para endocardite infecciosa:
– Hemoculturas positivas típicas para endocardite de pelo menos 2 amostras de sangue separadas: Estafilococos aureus, Estreptococo viridans, Estreptococo bovis, HACEK grupo, ou enterococos em ausência de foco primário.
– Hemoculturas persistentemente positivas, obtidas >12 horas de intervalo ou todas de 3 ou a maioria de 4 ou mais hemoculturas separadas, com intervalo de pelo menos 1 hora entre as primeiras e as últimas coletas.

2. Evidência de envolvimento do endocárdio:
– Ecocardiograma positivo para endocardite infecciosa, mostrando uma vegetação, abscesso, nova deiscência de prótese valvar.
– Desenvolvimento de nova regurgitação valvar (mudança de sopro pré-existente não é suficiente).

Critérios Menores:

1. Predisposição: doença cardíaca pré-existente ou uso de drogas intravenosas.
2. Febre: temperatura > 38.0°C.
3. Fenômenos vasculares: êmbolos sépticos, aneurismas micóticos, infartos, hemorragias intracranianas, conjuntivite de Roth, nódulos de Janeway.
4. Fenômenos imunológicos: glomerulonefrite, nódulos de Osler, manchas de Roth, fator reumatoide.
5. Hemoculturas positivas que não atendem aos critérios maiores ou evidência serológica de infecção ativa com um organismo consistente com endocardite.

Os casos são então classificados em:

– Endocardite Infecciosa Definida: 2 critérios maiores, ou 1 critério maior e 3 critérios menores, ou 5 critérios menores.
– Endocardite Infecciosa Possível: 1 critério maior e 1 critério menor, ou 3 critérios menores.
– Endocardite Infecciosa Descartada: resolução de manifestações clínicas com terapia antibiótica para ≤4 dias, ou ausência de patologia de endocardite em cirurgia ou autópsia, após terapia antibiótica para ≤4 dias, ou não atende aos critérios para possível endocardite infecciosa.

Quais as principais mudanças propostas pelos Critérios Duke-ISCVID 2023?

1. Definições claras de termos: Os novos critérios incluem definições claras de termos usados nos critérios atualizados, como “embolia arterial”, “infecção persistente” e “microbiologia positiva”. Essas definições ajudam a padronizar o diagnóstico e garantir que todos os médicos estejam usando os mesmos critérios.

2. Novo Critério Maior: Os novos critérios adicionam um novo Critério Maior para pacientes com endocardite infecciosa – a evidência cirúrgica. A inspeção intraoperatória por cirurgiões cardiovasculares é inestimável em caso de suspeita de EI, principalmente se não houver confirmação patológica ou microbiológica adicional disponível. Como resultado, evidências intraoperatórias de EI (por exemplo, vegetações, abscesso, destruição valvular, deiscência ou afrouxamento de válvula protética ou outra evidência direta de EI) agora contam como critério maior.

3. Novos Critérios Menores: As características clínicas adicionadas à lista de possíveis Critérios Menores como “condições predisponentes” incluem portadores de dispositivos cardíacos implantáveis endovasculares (DCIE) – por exemplo, eletrodos de marcapasso, implante/reparação de válvula transcateter, e diagnóstico prévio de EI. Também foram reconhecidos novos fenômenos vasculares, incluindo abscesso cerebral e abscesso esplênico. Por último, os autores desenvolveram uma definição prática de glomerulonefrite mediada por imunocomplexos dentro da categoria de fenômenos imunológicos.

4. Evidência microbiológica positiva: Os novos critérios exigem evidência microbiológica positiva para o diagnóstico definitivo de endocardite infecciosa, enquanto os critérios anteriores permitiam o diagnóstico baseado em achados clínicos e laboratoriais específicos. Isso ajuda a garantir que o diagnóstico seja preciso e evita o tratamento desnecessário de pacientes com sintomas semelhantes, mas sem endocardite infecciosa. Além dessas diferenças, os novos critérios também incluem outras mudanças menores, como a inclusão de novos patógenos e a exclusão de outros.

Como os novos critérios podem melhorar a acurácia diagnóstica e favorecer o tratamento?

1. Diagnóstico mais preciso: Os novos critérios exigem evidência microbiológica positiva para o diagnóstico definitivo de EI, enquanto os critérios anteriores permitiam o diagnóstico baseado em achados clínicos e laboratoriais específicos.

2. Novas opções de diagnóstico: Foram propostas novas opções de diagnóstico, como enzima imunoensaio para espécies de Bartonella, PCR, sequenciamento amplicon/metagenômico e hibridização in situ. Além disso, eles incluem novas opções de imagem, como PET/CT com [18F]FDG e tomografia computadorizada cardíaca.

3. Tratamento mais individualizado: Os novos critérios levam em consideração fatores individuais ao determinar a duração do tratamento antibiótico necessário para tratar a EI. Isso ajudará a garantir que cada paciente receba um tratamento personalizado levando em consideração suas necessidades específicas.

4. Maior ênfase na prevenção: Há maior ênfase  na importância da prevenção da EI, especialmente em pacientes com alto risco de desenvolver a doença. Isso inclui medidas como profilaxia antibiótica antes de procedimentos dentários e cirúrgicos em pacientes com alto risco.

Quais as principais limitações e desafios para a implementação dos novos critérios na prática clínica?

Algumas das limitações incluem:

1. Requisitos para evidência microbiológica positiva: a exigência de evidência microbiológica positiva para o diagnóstico definitivo de EI pode ser difícil de obter em alguns casos. Isso pode levar a um subdiagnóstico da doença em alguns pacientes.

2. Disponibilidade de novas opções de diagnóstico: Algumas das novas opções de diagnóstico propostas pelos novos critérios podem não estar disponíveis em todos os hospitais ou clínicas, especialmente em áreas rurais ou áreas com recursos limitados.

3. Alterações múltiplas nos critérios: Os novos critérios propõem mudanças significativas em vários componentes do diagnóstico da EI ao mesmo tempo, o que pode ser difícil para os profissionais de saúde se adaptarem rapidamente.

4. Maior complexidade dos critérios: Os novos critérios são mais complexos do que os anteriores e podem exigir mais tempo e recursos para serem aplicados corretamente. Em resumo, embora os novos Critérios Duke-ISCVID de 2023 tenham o potencial de melhorar significativamente o diagnóstico e tratamento da EI, sua implementação na prática clínica pode enfrentar algumas limitações e desafios.

Como ficaram, então, os novos Critérios Duke-ISCVID de 2023?
Critérios maiores:

  • Microbiológicos
    • Hemoculturas positivas para microrganismos típicos de EI (por exemplo, estreptococos viridans, Staphylococcus aureus) isolados de duas ou mais hemoculturas.
    • Hemoculturas positivas para germes que raramente causam EI, isolados em três ou mais hemoculturas.
  • Testes laboratoriais positivos
    • PCR para Coxiella burnetii, Bartonella sp, ou Tropheryma whipplei; ou anticorpos/IF para Bartonella.
  • Imagem positiva para EI:
    • Evidência de envolvimento valvar em exames de imagem (ecocardiograma transtorácico ou transesofágico, tomografia computadorizada cardíaca ou FDG PET/CT). Inclui nova regurgitação ao ecocardiograma (mudança de sopro pré-existente não é suficiente)
  • Critério cirúrgico
    • Evidência de EI documentada à inspeção direta intraoperatória dispensam critérios de imagem ou microbiológicos

Critérios menores:

  • Predisposição: história prévia de endocardite, intervenção valvar prévia, doença congênita, cardiopatia hipertrófica.
  • Febre ≥38°C.
  • Fenômenos vasculares: embolia arterial, aneurisma micótico, hemorragia conjuntival, lesões de Janeway, abcesso esplênico.
  • Fenômenos imunológicos: glomerulonefrite, nódulos de Osler, fator reumatoide positivo.
  • Fenômenos microbiológicos: evidência microbiológica não satisfazendo critério maior ou sorologia positiva para organismos conhecidos por causar EI (inclui PCR ou amplicon/sequenciamento metagenômico de patógeno atípico)
  • Imagem: Atividade metabólica anormal detectada por [18F]FDG PET/CT dentro de 3 meses após o implante da prótese valvar, enxerto aórtico ascendente, eletrodos de dispositivo intracardíaco ou outro material protético.

Para definir o diagnóstico:

  • Endocardite definitiva
    • Critérios patológicos
      • Microorganismos identificados no contexto de sinais clínicos de endocardite ativa em uma vegetação; de tecido cardíaco; de uma prótese valvar explantada ou anel de sutura; de um enxerto de aorta ascendente (com envolvimento da valva aórtica); de um dispositivo eletrônico implantável intracardíaco endovascular; ou de uma embolia arterial; OU
      • Endocardite ativa (aguda, subaguda ou crônica) identificada em ou sobre uma vegetação; de tecido cardíaco; de uma prótese valvar explantada ou anel de sutura; de um enxerto de aorta ascendente (com evidência concomitante de envolvimento da válvula); de um dispositivo implantável intracardíaco endovascular; ou de um êmbolo.
    • Critérios clínicos
      • Dois critérios maiores; ou
      • Um critério maior e três critérios menores; ou
      • Cinco critérios menores.
  • Endocardite provável
    • Um critério maior e um critério menor; ou
    • Três critérios menores.
  • Endocardite descartada ou rejeitada
    • Diagnóstico diferencial alternativo consistente que explique os sinais/sintomas;
    • Ausência de recorrência apesar da terapia antibiótica por menos de 4 dias;
    • Ausência de evidência patológica ou macroscópica de endocardite infecciosa em cirurgia ou autópsia, com terapia antibiótica por menos de 4 dias;
    • Não atende aos critérios para endocardite possível acima.

 

No geral, os Critérios Duke-ISCVID de 2023 são uma atualização importante dos Critérios Duke Modificados anteriores, e esperamos que possam ajudar a melhorar a acurácia diagnóstica e o tratamento da endocardite infecciosa.

Referência:

Fowler VG, Durack DT, Selton-Suty C, et al. The 2023 Duke-ISCVID Criteria for Infective Endocarditis: Updating the Modified Duke Criteria. Clin Infect Dis. 2023 May 4:ciad271. doi: 10.1093/cid/ciad271. Epub ahead of print. 

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Sobre o autor

Humberto Graner

Co-Editor do site Cardiopapers
Especialista em Cardiologia e Medicina Intensiva
Professor das Faculdades de Medicina da UFG e UniEvangélica (Goiás)
Doutor em Ciências pelo InCor-HCFMUSP
Fellowship em Coronariopatias Agudas pelo InCor-HCFMUSP
Coordenador do Pronto Atendimento do Hospital Israelita Albert Einstein - Unidade Goiânia (GO)
Pesquisador da ARO (Academic Research Organization) - Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo (SP)

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